1) Introdução:
Já lá vai o tempo em que o Conselho
de Estado francês teve a ousadia de, a 6 de dezembro de 1855, na decisão Rothschild[1],
admitir a responsabilização do Estado por danos decorrentes da atuação dos seus
serviços. O outrora absoluto princípio do “the
King can do no wrong” e a intocabilidade da atuação do Estado nas suas vestes de autoridade pública
foram-se esbatendo para dar lugar ao contencioso de plena jurisdição e à tutela
jurisdicional efetiva.
Nesse aspeto, a responsabilização de
entidades públicas ilustra o percurso que levou o contencioso do objetivismo ao
subjetivismo: não se trata de mera defesa da legalidade, sendo as posições
jurídicas ativas dos particulares merecedoras de tutela.
No presente texto, pretende-se
abordar a autonomia da ação de responsabilidade face aos restantes meios
processuais e alguns traços de objetivismo que ainda vigoram no regime, com
implicações para a vigência total do princípio da tutela jurisdicional efetiva.
2)
A
responsabilidade civil pública – contextualização e âmbito de jurisdição:
Tal como no direito privado, em que
cada sujeito responde em resultado de atuações suas, ilícitas ou até lícitas[2], também as entidades
públicas, no exercício das suas atividades, têm de estar sujeitas à
responsabilidade civil. Com efeito, o artigo 22º da CRP consagra o princípio da
responsabilidade civil das entidades públicas, determinando que qualquer
atuação danosa destas, que cause prejuízo para alguém, constitui na esfera do
particular lesado o direito a ser ressarcido. Ora, este princípio é uma
decorrência da consagração constitucional do princípio da tutela jurisdicional
efetiva, nos termos do artigo 20º da CRP, que assegura o direito ao acesso aos
meios jurisdicionais para fazer valer a defesa de posições jurídicas ativas.
Apesar de já amplamente debatida na
doutrina, coloca-se a seguinte questão prévia: qual a jurisdição competente para
julgar a responsabilidade civil das entidades públicas? Este campo de
litigiosidade poderia, em tese, estar submetido tanto à jurisdição
administrativa como à jurisdição civil – trata-se da apreciação da
ressarcibilidade de danos, esgotando-se o seu alcance no domínio patrimonial e
compensatório, sem pôr em causa a eficácia das atuações administrativas que
deram origem ao dano. A decisão jurisdicional que verse sobre uma ação de
responsabilidade civil extracontratual de entidades públicas leva ao reconhecimento
de “direito ao ressarcimento mas nunca o direito à reversão dos efeitos
jurídicos inovadores introduzidos na ordem jurídica”[3].
Duas preponderantes razões
justificam, contudo, a apreciação destas ações em sede da jurisdição
administrativa: i) frequentemente, decorre do exercício do poder decisório
administrativo, concretizado na “prática de condutas jurídico-administrativas”[4], o fundamento para
desencadear ações de responsabilidade civil contra quem emana esses atos – não
seria razoável exigir que um particular tivesse de intentar em dois tribunais
de jurisdições diferentes (administrativa e comum) duas ações que decorrem da
prática do mesmo ato por uma entidade pública; ii) a especialidade do Regime da
Responsabilidade Civil Extracontratual do Estado e Demais Entidades Públicas,
constante da Lei 67/2007, de 31 de dezembro, (doravante designado RRCEE),
existindo soluções sui generis, próprias
da natureza pública dos atos em causa, face ao Direito Civil[5].
Assim, caberá à jurisdição
administrativa, nos termos do artigo 212º da CRP e das alíneas f), g) e h) do
nº1 do artigo 4º do ETAF, o julgamento de litígios em matéria de
responsabilidade civil do Estado e demais entidades públicas emergentes de
relações jurídico-administrativas.
3)
Ação de
responsabilidade – um meio processual autónomo:
O entendimento clássico da doutrina
portuguesa, de acordo com o artigo 7º do Decreto-lei 48.051, de 21 de Novembro
de 1967, era de que a anulação de um ato danoso e a execução da sentença
resultante da ação de anulação era a reparação, em si, dos prejuízos causados
pelo ato, havendo apenas direito à reparação dos danos que sempre seriam
irreparáveis, independentemente da interposição de recurso anulatório devido[6]. Deste modo, a ação de
responsabilidade teria autonomia em situações muito limitadas, confundindo-se
ressarcimento de danos (subjetivismo) com restauração da legalidade
(objetivismo).
Ora, tal construção, claramente
centrada no objetivismo e defesa da legalidade, não se coaduna com a mudança do
foco do Contencioso Administrativo para a tutela efetiva das posições jurídicas
ativas dos particulares – o dano causado na esfera jurídica dos administrados
não é a ilegalidade da atuação administrativa mas sim o prejuízo efetivo e
pessoal sofrido por estes.
É com base neste argumento que o
artigo 38º do CPTA consagra a autonomia da ação de responsabilidade civil em
relação aos demais meios processuais administrativos.
O artigo 38º/1 do CPTA estabelece
que o facto de um ato administrativo se ter tornado inimpugnável não impede que
se conheça, a título incidental, da ilegalidade dos mesmos, o que abre caminho
a que se possa propor ações de responsabilidade civil contra atos anuláveis
cujo prazo de impugnação já decorreu. Sendo admissível a propositura de ações
de responsabilidade nesses termos, nada impedirá que se também possa propor uma
ação de responsabilidade isolada quando o ato ainda for impugnável.
Ora, uma interpretação extensiva é
devida na leitura do artigo 38º/1 do CPTA, devendo abranger não só o
conhecimento pelo tribunal dos efeitos decorrentes da ilegalidade de atos
administrativos como ainda os que advenham da condenação da Administração à
prática de ato administrativo devido (artigos 66º e seguintes do CPTA)[7]. Suporta esta
interpretação o facto de o artigo 38º do CPTA se encontrar no âmbito do
Capítulo I (disposições gerais) do Título II (ação administrativa) do CPTA,
comum a todos os meios processuais do artigo 37º/1 do CPTA.
4)
38º/2
do CPTA e 4º do RRCEE – objetivismo encapotado:
Finda a leitura do nº 1 do artigo
38º do CPTA, o princípio da plenitude da garantia jurisdicional administrativa
aparenta estar preenchido, na medida em que o particular se encontra munido da
possibilidade de recorrer autonomamente a um pedido indemnizatório, mesmo que
não tenha impugnado o ato tempestivamente, existindo uma liberdade de escolha
do meio processual a ser utilizado.
Coloca-se, em primeiro lugar, a
questão de saber quais são os limites impostos pelo artigo 38º/2 do CPTA quando
refere que “não pode ser obtido por outros meios processuais o efeito que
resultaria da anulação do ato impugnável”. Na medida em que a decisão de uma
ação de impugnação de um ato administrativo regulará a relação material em
causa, este artigo terá de ser lido no sentido de a ação de responsabilidade
ter apenas de versar sobre o apuramento dos danos decorrentes do ato, não
podendo a sentença definir nada mais do que isso – aprecia-se a ilegalidade do
ato para ressarcir o particular e não para questionar a sua eficácia[8].
Acontece que, no âmbito do RRCEE,
encontra-se consagrado no seu artigo 4º a figura da culpa do lesado, que
determina a possibilidade de redução ou mesmo eliminação do montante de
indemnização a ser conferido ao particular quando este, culposamente, não
recorra à “via processual adequada à eliminação do ato jurídico lesivo”.
Confrontado com esta situação, o particular não tem uma verdadeira liberdade de
escolha de meios processuais[9], já que caso não opte por
recorrer à impugnação do ato ser-lhe-á coartado (total ou parcialmente) o direito
que teria a ser indemnizado em face de uma atuação ilegal da administração.
O preceituado neste artigo leva a um
esvaziamento do artigo 38º/2 do CPTA, sendo que todo o subjetivismo presente em
conceder liberdade de escolha do meio processual encontra um requisito de
objetividade para que seja reconhecida a plenitude do direito à indemnização.
Poder-se-á pensar, analogicamente,
no seguinte caso: em sede de expropriação ilegal, caso o proprietário se
conforme com a mesma e exerça apenas o seu direito a ser indemnizado, faria
sentido que a sua indemnização fosse restringida por não ter contestado a
validade do ato?
No âmbito de um contencioso
administrativo subjetivista, a necessidade de recurso a certos meios
processuais condiciona a livre definição, pelo particular, da via que melhor
satisfará os seus interesse e, por conseguinte, põe em causa nas ações de
responsabilidade civil o princípio da tutela jurisdicional efetiva.
Notas bibliográficas:
- SILVA, Vasco Pereira da, “O Contencioso Administrativo no Divã da Psicanálise”, 2ª Edição, Almedina, 2009;
- FRANCISCO PAES MARQUES, “O Contencioso Administrativo e a Responsabilidade Civil do Estado e demais pessoas coletivas públicas”, O Regime de Responsabilidade Civil Extracontratual do Estado e demais entidades públicas: comentários à luz da jurisprudência, AAFDL Editora, 2017;
- MARCO CALDEIRA, “Artigo 4º - Culpa do lesado”, O Regime da Responsabilidade Civil Extracontratual do Estado e demais entidades públicas: comentários à luz da jurisprudência, AAFDL Editora, 2017;
- MARCELLO CAETANO, Manual de Direito Administrativo, tomo II, 10ª Edição, Almedina;
- SÉRVULO CORREIA, “A efetivação processual da responsabilidade civil extra-contratual da Adminstração por actos de gestão pública”, La Responsabilidad de Los Poderes Publicos, Marcial Pans, 1999
[1] Apesar de menos conhecido que o caso Blanco, de 8 de Fevereiro de 1873, foi a
primeira decisão a definir os fundamentos da responsabilidade estatal.
[2] V.g. Estado de necessidade.
[3] FRANCISCO PAES MARQUES, “O Contencioso
Administrativo e a Responsabilidade Civil do Estado e demais pessoas coletivas
públicas”, O Regime de Responsabilidade Civil Extracontratual do Estado e
demais entidades públicas: comentários à luz da jurisprudência, AAFDL Editora,
2017, pp. 101.
[4] FRANCISCO PAES MARQUES, “O Contencioso
Administrativo e a Responsabilidade Civil do Estado e demais pessoas coletivas
públicas”, O Regime de Responsabilidade Civil Extracontratual do Estado e
demais entidades públicas: comentários à luz da jurisprudência, AAFDL Editora,
2017, pp. 99 e ss.
[5] V.g. Indemnização pelo sacrifício.
[6] Neste sentido, MARCELLO CAETANO, Manual
de Direito Administrativo, tomo II, 10ª Edição, Almedina, pp. 1235.
[7] Quanto à extensão do artigo 38º/1 do
CPTA a ações de impugnação e condenação à emissão de normas (artigos 72º e ss.
do CPTA), aparenta ser afirmativa a posição de FRANCISCO PAES MARQUES (“O
Contencioso Administrativo e a Responsabilidade Civil do Estado e demais
pessoas coletivas públicas”, O Regime de Responsabilidade Civil Extracontratual
do Estado e demais entidades públicas: comentários à luz da jurisprudência,
AAFDL Editora, 2017, pp. 117). Em sentido contrário, CARLOS FERNANDES CADILHA
(“Regime da Responsabilidade Civil Extracontratual do Estado e Demais Entidades
Públicas – Anotado, 2ª edição, Coimbra Editora, 2011, pp. 115).
[8] SÉRVULO CORREIA, “A efetivação
processual da responsabilidade civil extra-contratual da Adminstração por actos
de gestão pública”, La Responsabilidad de Los Poderes Publicos, Marcial Pans,
1999, pp. 295.
[9] MARCO CALDEIRA, “Artigo 4º - Culpa do
lesado”, O Regime da Responsabilidade Civil Extracontratual do Estado e demais
entidades públicas: comentários à luz da jurisprudência, AAFDL Editora, 2017,
pp. 340.
Afonso Carvalho, nº 26277
Comentários
Enviar um comentário