O Direito Administrativo passou por dois
“acontecimentos traumáticos” aquando do seu surgimento, o que permite explicar
alguns dos problemas com que se defronta atualmente.
O seu primeiro “trauma” resulta do nascimento do
Contencioso Administrativo, na Revolução Francesa. Concebido como “privilégio
de foro” da Administração, não se destinava a garantir a proteção dos direitos
dos particulares, mas a assegurar a garantia da Administração e da defesa dos
poderes públicos. Deste modo, cabia à própria Administração julgar-se a si
mesma, com base num princípio da separação de poderes que levou à criação de um
“juiz doméstico” ou “de trazer por casa”, dado que os tribunais judiciais
estavam proibidos de interferir na esfera da Administração (troubler, de quelque manière que ce soit, les opérations des corps administratifs).
Instaurou-se, assim, um sistema no qual imperava uma “confusão entre a função
de administrar e a de julgar”.
É precisamente deste Contencioso Administrativo, desta
“desordem” entre o poder administrativo e o poder judicial, que surge e se
autonomiza o Direito Administrativo. Decorre daqui a segunda “experiência
traumática” que importa referir e na qual me focarei.
O Direito Administrativo consagrou a sua autonomia em
1873, quando foi proferida a sua “primeira sentença” pelo Tribunal de Conflitos
francês. O Acórdão Blanco (8 de fevereiro de 1873) dizia respeito ao
atropelamento de uma criança de 5 anos, Agnès Blanco, por um vagão do serviço
público de tabaco (Companhia Nacional da Manufatura do Tabaco, em Bordéus). O pai de Agnès não conseguiu obter uma indemnização, com base nos artigos 1382º a 1384º do Código Civil francês, nem por parte do Tribunal de
Bordéus, nem do Conselho de Estado, uma vez que ambos se declararam
incompetentes para decidir a questão, que envolvia a Administração e não era, deste modo, regulada pelo Direito Civil. Por sua vez, o Tribunal de Conflitos veio defender que a
competência de decisão cabia à ordem administrativa, o que permitiu resolver o
conflito de jurisdições, mas veio criar outro problema. Simultaneamente, o
Tribunal de Conflitos francês considerou que, sendo o serviço em causa um
serviço público, não se poderia atribuir a indemnização pelas normas aplicáveis
às relações entre particulares e que deveria ser criado um “direito especial”
para a Administração, tendo em conta o seu “estatuto de privilégio”. O Conseil
d’État, que acabou por ser declarado competente para decidir, atribuiu a Agnès,
em 1874, uma pensão vitalícia.
Limitou-se, desta forma, a responsabilidade da
Administração perante o atropelamento de uma criança de apenas 5 anos, que
ficou com marcas para o resto da vida, incluindo uma perna amputada. Esta
“triste sentença” é mais um sinal evidente da falta de consideração que se
tinha pela proteção dos particulares e da negação dos seus direitos.
Foi com este acórdão que se afirmou expressamente a
competência dos tribunais administrativos quanto à responsabilidade
extracontratual do Estado e que o Direito Administrativo se autonomizou
enquanto ramo de direito. O Direito Administrativo é, portanto, um direito de criação
jurisprudencial, elaborado pelo Contencioso Administrativo que é, por sua vez,
marcado pelo “pecado original” da ligação da Administração à Justiça.
Atualmente, em princípio, este litígio seria julgado pelos tribunais judiciais, sendo que a Lei de 31 de dezembro de 1957 transferiu para os tribunais o poder de julgar os litígios relativos a danos causados por veículos (como era o caso do Acórdão Blanco).
Bibliografia:
- PEREIRA DA SILVA, Vasco, O Contencioso Administrativo no Divã da Psicanálise – Ensaio sobre as ações no novo processo
administrativo, 2ª edição, Almedina, 2009.
- AROSO DE ALMEIDA, Mário, Manual de Processo Administrativo, 3ª edição, Almedina, Coimbra,
2017
Webgrafia:
- http://www.conseil-etat.fr/Decisions-Avis-Publications/Decisions/Les-decisions-les-plus-importantes-du-Conseil-d-Etat/Tribunal-des-conflits-8-fevrier-1873-Blanco
Madalena Silva, nº 26272
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