A competência dos Tribunais Administrativos em matéria contraordenacional: a propósito do âmbito da jurisdição administrativa
1. Considerações gerais acerca da delimitação constitucional do âmbito material de jurisdição
À justiça
administrativa encontra-se reservado, por imposição constitucional, um domínio
substancial próprio.
Com
efeito, o artigo 212.º, n.º 3 da Constituição da República Portuguesa (CRP) estabelece
que “compete aos tribunais administrativos (…) o julgamento das ações e recursos
contenciosos que tenham por objeto dirimir os litígios emergentes das relações
jurídicas administrativas”.
Este
conceito – de relação jurídico-administrativa – abarca, seguramente, todas as
relações jurídicas de direito administrativo[1], i.e.,
regidas por normas de direito público.
Todavia,
tem-se colocado o problema de saber se esta norma impõe uma reserva material absoluta
da jurisdição administrativa para conhecer de todas as questões de direito
emergentes de relações de direito administrativo, sendo esta a posição
defendida por Gomes Canotilho e Vital Moreira, para quem “[a] letra do preceito
constitucional parece não deixar margem para exceções no sentido de (…) que
certas questões de natureza administrativa possam ser atribuídas a outros
tribunais”[2].
Uma
segunda posição, defendida na doutrina, entre outros, por J.C. Vieira de
Andrade, entende esta norma como a definição “de um modelo típico, suscetível
de adaptações ou de desvios em casos especiais, desde que não fique
descaracterizado o núcleo caracterizador do modelo”[3]. Esta
posição moderada tem sido adotada pela jurisprudência do Tribunal
Constitucional e do Supremo Tribunal Administrativo, que têm-se pronunciado
pela natureza programática da norma do artigo 212.º, n.º 3, da CRP, no sentido
de que não são inconstitucionais alguns desvios ao âmbito material de
jurisdição dos tribunais administrativos, atentas, designadamente, algumas razões
de ordem prática[4].
No Acórdão
do Tribunal Constitucional n.º 746/96, de 29 de Maio, expendeu-se que “[a]os tribunais
administrativos compete a justiça administrativa, isto é, cabe-lhes o
julgamento das ações e dos recursos destinados a dirimir os conflitos
emergentes de relações jurídico-administrativas, quer elas sejam relações
jurídicas administrativas públicas, ou em que um dos sujeitos, pelo menos, atue
na veste de autoridade pública, munido de um poder de imperium, com vista à realização do interesse público legalmente
definido.
Independentemente
de saber se o artigo [212º, n.º 3][5] da
Constituição, atribui aos tribunais administrativos uma reserva material
absoluta de jurisdição, ou se aí apenas se consagram os tribunais
administrativos como os tribunais comuns em matéria administrativa, o certo é
que nada obsta a que se atribua a outros tribunais (…) a competência para
julgamento de questões de direito administrativo, quando existe toda uma
tradição jurídica nesse sentido e, onde, além disso, concorrem razões que têm a
ver com uma mais fácil defesa dos direitos”.
Este
entendimento tem assento, designadamente, no contexto histórico do país, onde a
estrutura e os recursos humanos e materiais do sistema judiciário
administrativo se mostram claramente insuficientes para que os tribunais
administrativos possam abarcar o julgamento de todo o conjunto de litígios
emergentes das relações disciplinadas pelo direito administrativo.
2. A competência dos tribunais administrativos
em matéria de contraordenações (urbanísticas)
No plano
legislativo, para delimitação do âmbito material de competência dos tribunais
administrativos há, desde logo, que ter em conta as opções vertidas pelo
legislador no artigo 4.º do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais
(ETAF), mas também em outros diplomas[6].
No que diz
respeito às contraordenações, não existem dúvidas de que – embora convoquem
normas de direito penal e processual penal – os processos relativos à
impugnação de decisões administrativas de aplicação de coimas integram o
conceito de litígios emergentes de relações jurídico-administrativas, seja da
perspetiva do sujeito (uma autoridade administrativa) seja da perspetiva do
direito aplicável (normas de direito administrativo sancionatório). Efetivamente,
como refere o Professor Figueiredo Dias, as contraordenações, visando o
sancionamento de condutas ético-socialmente neutras, integram o domínio do
ilícito administrativo, dando origem, no seu conjunto ao “direito
(administrativo, não penal!) de mera ordenação social” e à “categoria
jurídico-administrativa das contraordenações”[7].
A reforma
da justiça administrativa, de 2002, manteve a competência para apreciação dos
recursos de contraordenação – rectius,
a impugnação dos atos de aplicação de coimas – nos tribunais judiciais.
No
entanto, com a revisão de 2015, foram introduzidas algumas alterações ao ETAF –
pelo Decreto-Lei n.º 214-G/2015,de 2 de outubro –, entre as quais, o artigo
1.º, n.º 1, passou a prever que “[o]s tribunais da jurisdição administrativa (…)
são os órgãos de soberania com competência para administrar a justiça em nome
do povo, nos litígios compreendidos pelo âmbito de jurisdição previsto no
artigo 4.º deste Estatuto”, sendo que, do artigo 4.º, n.º 1, alínea l), do ETAF
passou a constar – sob a epígrafe “âmbito da jurisdição” – que “compete aos
tribunais da jurisdição administrativa (…) a apreciação de litígios que tenham
por objeto questões relativas a: (…) Impugnações judiciais de decisões da
Administração Pública que apliquem coimas no âmbito do ilícito de mera ordenação
social por violação de normas de direito administrativo em matéria de
urbanismo”.
Como nota
Ana Fernanda Neves, a “generalidade dos litígios relativos a processos de
contraordenação continuam fora da esfera da jurisdição administrativa”[8]. Porém,
da nova redação da alínea l), do n.º 1, do artigo 4.º, do ETAF resulta clara a
atribuição de competência aos tribunais administrativos para o julgamento dos
recursos de impugnação de decisões administrativas de aplicação de coimas,
ainda que circunscrita às situações de violação de normas de direito do
urbanismo.
Trata-se
de uma concretização do programa constitucional ínsito no citado artigo 212.º,
n.º 3, da CRP, pois anteriormente não existia qualquer referência no artigo 4.º
do ETAF a estas matérias. Esta norma é, contudo, menos abrangente do que a que
constava do anteprojeto projeto que deu origem à aprovação do Decreto-Lei n.º
214-G/2015, de 2 de outubro, uma vez que aí se continha a referência expressa
aos domínios, não só do urbanismo, mas também do ambiente, do ordenamento do
território, do património cultural e dos bens do Estado.
Tendo
presente a intencional supressão destas matérias – originariamente previstas no
anteprojeto de revisão – a redação atual da alínea l) do n.º 1 do artigo 4.º do
ETAF apresenta algumas dificuldades de ordem prática, seja no que concerne à
densificação do conceito “matéria de urbanismo” e à sua distinção das matérias
do ordenamento do território e do ambiente, quer ainda no que respeita à questão
da exclusão (ou inclusão) das infrações contraordenacionais em matéria de licenciamento
de atividades económicas, como sucede em relação aos regimes jurídicos aplicáveis
à instalação de estabelecimentos industriais, de restauração e bebidas e
prestação de serviços e de recintos para espetáculos públicos, os quais
apresentam necessariamente implicações urbanísticas, quer ao nível da
construção quer ao nível do seu uso.
Coloca-se,
de facto, o problema da delimitação do conceito “matéria de urbanismo” face aos
domínios afins, sabendo-se que é controversa a sua distinção, sobretudo,
relativamente ao ordenamento do território e também, de certo modo, em relação
ao direito do ambiente. Veja-se, a este propósito, o exemplo da infração de
normas contidas em instrumentos como a Reserva Ecológica Nacional, que integra
o domínio finalístico do direito ambiental, embora com necessários reflexos ao
nível do planeamento territorial e das faculdades urbanísticas reconhecidas aos
particulares.
É pois sabido
que o direito de urbanismo não reúne um significado consensual, variando a
amplitude de situações abrangidas por esse conceito em função de critérios avançados
pela doutrina, mas que não encontram eco expresso na Constituição ou na
legislação ordinária[9], pelo
que a norma do artigo 4.º, n.º, 1, alínea l), do ETAF vem potenciar situações
de conflitos de competência entre a jurisdição cível e administrativa, em
matéria de contraordenações.
Esta
solução suscita problemas do ponto de vista da segurança jurídica, sendo de
prever que o mesmo tipo de decisões contraordenacionais venham a ser impugnadas
em ambas as jurisdições, cabendo à jurisprudência concretizar os critérios de
identificação dos litígios incluídos na alínea l) do n.º 1 do artigo 4.º do
ETAF.
Poder-se-á
colocar ainda a questão de saber se na cláusula aberta da alínea o) do n.º 1 do
artigo 4.º do ETAF podemos integrar os demais litígios relativos a processos de
contraordenação, sendo de interpretar esta alínea, segundo entendemos, no
sentido de que aí se excluem os recursos de decisões de aplicação de coimas por
infração de normas de direito administrativo em quaisquer outras matérias que, por
determinação legal, estejam cometidas a outras jurisdições, como sucede com as
contraordenações relativas a atividades económicas e as infrações ao regime
jurídico da concorrência.
3. Conclusão
Não
obstante a atribuição de competência aos tribunais administrativos prevista no
artigo 4.º, n.º 1, alínea l), do ETAF constituir um passo em frente na
concretização do comando constitucional ínsito no artigo 212.º, n.º 3, da CRP, a
opção do legislador não se mostra isenta de dificuldades no que respeita à
identificação precisa das situações abrangidas pelo conceito “matéria de
urbanismo, sendo desejável a sua clarificação com vista a obviar a situações de
conflito entre jurisdições, com o prejuízo para a segurança jurídica que tal
indefinição acarreta.
[1]
Cfr. J.C. Vieira de Andrade, A Justiça
Administrativa (Lições), 14.ª edição, Almedina, 2015, pág. 49.
[2]
Cfr. J.J. Gomes Canotilho e Vital Moreira, Constituição
da República Portuguesa Anotada, Volume II, 4.ª edição revista, Coimbra
Editora, 2010, págs. 565-566.
[3]
Cfr. ob. cit. pág. 94.
[4]
Cfr. entre outros, o Acórdão do STA, de 14.06.2000 [Proc. n. 045633].
[5]
Parêntesis nosso.
[6] Como
sucede, designadamente, em matéria de fixação da indemnização por expropriação
de utilidade pública.
[7]
Cfr. Direito Penal, Parte Geral, Tomo
I, 2.ª edição, Coimbra Editora, pág. 155-158.
[8]
Cfr. Alargamento do âmbito da jurisdição
administrativa, in O Anteprojeto
de Revisão do Código de Processo nos Tribunais Administrativos e do Estatuto
dos Tribunais Administrativos e Fiscais, Coord. Carla Amado Gomes et alii, AAFDL, 2014,Pág. 449.
[9]
Para uma síntese dos vários critérios e definições, vide Fernando Alves
Correia, Manual de Direito do Urbanismo,
Almedina, Volume I, 4.ª edição, Almedina, 2012, págs. 64 e seguintes.
BIBLIOGRAFIA:
- Ana Fernanda Neves, Alargamento do âmbito da jurisdição administrativa, in O Anteprojeto de Revisão do Código de Processo nos Tribunais Administrativos e do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais, Coord. Carla Amado Gomes et alii, AAFDL, 2014;
- Carlos Carvalho, Alterações ao Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais, in Comentários à Revisão do ETAF e do CPTA, 2.ª edição, Coord. Carla Amado Gomes et alii, AAFDL, 2016;
- Fernando Alves Correia, Manual de Direito do Urbanismo, Almedina, Volume I, 4.ª edição, almedina, 2012;
- J.C. Vieira de Andrade, A Justiça Administrativa (Lições), 14.ª edição, Almedina 2015;
- J.J. Gomes Canotilho e Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, Volume II, 4.ª edição revista, Coimbra Editora;
- Jorge de Figueiredo Dias, Direito Penal, Parte Geral, Tomo I, 2.ª edição, Coimbra Editora, pág. 155-158.Carolina Gomes
Aluna n.º 24367
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