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Da legitimidade ativa das associações privadas, para efeitos de dedução do pedido de declaração de ilegalidade de normas administrativas, com força obrigatória geral

Da legitimidade ativa das associações privadas, para efeitos de dedução do pedido de declaração de ilegalidade de normas administrativas, com força obrigatória geral

1. Considerações preliminares
A atuação judicial das associações privadas, no contexto do processo administrativo, nem sempre assume contornos perfeitamente definidos, constituindo o objetivo do presente estudo fornecer um contributo para a análise da sua legitimidade ativa no que concerne ao pedido de declaração de ilegalidade de normas administrativas, com força obrigatória geral.

2. Da legitimidade ativa em geral
A legitimidade processual consiste na suscetibilidade de ser parte certa ou exata em determinada ação, posição que se afere, do lado ativo, pelo interesse direto em demandar, pretendendo o legislador, com este pressuposto, excluir do processo os que, relativamente a ele, possuam interesses meramente reflexos, indiretos ou derivados.
Como referem José Lebre de Freitas e Isabel Alexandre[1], a legitimidade “como pressuposto processual (geral), exprime a relação entre a parte no processo e o objeto deste (a pretensão ou pedido) e, portanto, a posição que a parte deve ter para que possa ocupar-se do pedido, deduzindo-o ou contradizendo-o”.
A legitimidade implica, por isso, a relação concreta dos sujeitos processuais com o objeto da ação, determinando-se a posição de parte pelos termos em que a relação material controvertida surge configurada.
No processo administrativo a temática da legitimidade ativa, encontra-se regulada no artigo 9.º do CPTA, aí se estabelecendo, no n.º 1, que “Sem prejuízo do disposto no número seguinte e no capítulo II do título II, o autor é considerado parte legítima quando alegue ser parte na relação material controvertida”.
Por sua vez, o artigo 9.º, n.º 2, do CPTA estatuí que “Independentemente de ter interesse pessoal na demanda, qualquer pessoa, bem como as associações e fundações defensoras dos interesses em causa, as autarquias locais e o Ministério Público têm legitimidade para propor e intervir, nos termos previstos na lei, em processos principais e cautelares destinados à defesa de valores e bens constitucionalmente protegidos, como a saúde pública, o ambiente, o urbanismo, o ordenamento do território, a qualidade de vida, o património cultural e os bens do Estado, das Regiões Autónomas e das autarquias locais, assim como para promover a execução das correspondentes decisões jurisdicionais”.
Esta norma surge em paralelo ao que se encontra estipulado, para o processo civil, no artigo 31.º do CPC, onde se prevê que “têm legitimidade para propor e intervir nas ações e procedimentos cautelares destinados, designadamente, à defesa da saúde pública, do ambiente, da qualidade de vida, do património cultural e do domínio público, bem como à proteção do consumo de bens e serviços, qualquer cidadão no gozo dos seus direitos civis e políticos, as associações e fundações defensoras dos interesses em causa, as autarquias locais e o Ministério Público, nos termos previstos na lei”.
Destas normas resulta um alargamento da legitimidade processual ativa por via da dispensa da alegação e prova de um interesse direto e pessoal, sendo que, ao remeter para os “termos previstos na lei”, a norma do artigo 9.º, n.º 2, do CPTA convoca o regime previsto na Lei n.º 83/95, de 31 de Agosto[2], que define os casos e os termos em que é conferido o direito de ação popular para a prevenção, cessação ou perseguição judicial das infrações previstas no n.º 3 do artigo 52.º da Constituição da República Portuguesa (CRP), que consagra o seguinte:
É conferido a todos, pessoalmente ou através de associações de defesa dos interesses em causa, o direito de ação popular nos casos e termos previstos na lei, incluindo o direito de requerer para o lesado ou lesados a correspondente indemnização, nomeadamente para:
a) Promover a prevenção, a cessação ou a perseguição judicial das infrações contra a saúde pública, os direitos dos consumidores, a qualidade de vida e a preservação do ambiente e do património cultural;
b) Assegurar a defesa dos bens do Estado, das regiões autónomas e das autarquias locais.
À luz do artigo 2.º, n.º 1, da LAP, quaisquer cidadãos no gozo dos seus direitos civis e políticos, bem como as associações e fundações defensoras dos interesses protegidos pelo artigo 52.º, n.º 3, da CRP, independentemente de terem ou não interesse direto na demanda, são titulares do direito de ação popular, sendo que o artigo 3.º da LAP elenca como requisitos “da legitimidade ativa das associações e fundações:
a) A personalidade jurídica;
b) O incluírem expressamente nas suas atribuições ou nos seus objetivos estatutários a defesa dos interesses em causa no tipo de ação de que se trate;
c) Não exercerem qualquer tipo de atividade profissional concorrente com empresas ou profissionais liberais.
Como referem de Mário Esteves de Oliveira e Rodrigo Esteves de Oliveira, o «raio de ação» do artigo 9.º, n.º 2, do CPTA esgota-se no pressuposto da legitimidade processual ativa, dando “resposta à questão de saber quem é que pode propor e intervir em processos administrativos principais e cautelares, estipulando (na sequência do que já constava da Lei n.º 83/95) que, quando a controvérsia disser respeito a um valor ou bem constitucionalmente protegido, qualquer indivíduo (e outras pessoas aí mencionadas) pode arrogar-se a sua defesa.”[3]
Vejamos, então, da legitimidade ativa das associações, no âmbito da ação administrativa destinada à impugnação de normas regulamentares e no que toca, em específico, ao pedido de declaração de ilegalidade, com força obrigatória geral.

3. Da legitimidade ativa das associações privadas para dedução do pedido de declaração de ilegalidade de normas administrativas, com força obrigatória geral
No que respeita especificamente à impugnação de normas regulamentares, com a revisão operada pelo Decreto-Lei n.º 214-G/2015, de 2 de Outubro, o artigo 73.º do CPTA passou a prever o seguinte:
1 – A declaração de ilegalidade com força obrigatória geral de norma imediatamente operativa pode ser pedida por quem seja diretamente prejudicado pela vigência da norma ou possa vir previsivelmente a sê-lo em momento próximo, independentemente da prática de ato concreto de aplicação, pelo Ministério Público e por pessoas e entidades nos termos do n.º 2 do artigo 9.º, assim como pelos presidentes de órgãos colegiais, em relação a normas emitidas pelos respetivos órgãos.
2 – Quem seja diretamente prejudicado ou possa vir previsivelmente a sê -lo em momento próximo pela aplicação de norma imediatamente operativa que incorra em qualquer dos fundamentos de ilegalidade previstos no n.º 1 do artigo 281.º da Constituição da República Portuguesa pode obter a desaplicação da norma, pedindo a declaração da sua ilegalidade com efeitos circunscritos ao seu caso[4].
Segundo Ana Raquel Moniz, este artigo do “CPTA recorta vários círculos de legitimidade, identificando: a) a ação particular, em que intenta o processo quem seja diretamente prejudicado pela vigência da norma ou possa vir previsivelmente a sê-lo em momento próximo, independentemente da prática de um ato concreto de aplicação; b) a ação pública, proposta pelo Ministério Público e pelos presidentes de órgãos colegiais, em relação a normas emitidas pelos respetivos órgãos (…); e c) a ação popular, em que a legitimidade cabe às pessoas e entidades referidas no n.º 2 do artigo 9.º” [5].
Como refere J. Eduardo Figueiredo Dias, “o interesse difuso pode ser definido como a refração em cada indivíduo de interesses unitários da comunidade, global e complexivamente considerada (…) normalmente caracterizado como interesse adespoti, isto é, sem dono, precisamente por pertencer a um grupo indeterminado e indeterminável de pessoas, que o titulam apenas por serem membros de uma determinada comunidade”, distinguindo-se dos “direitos ou interesses individuais homogéneos, caracterizados pela sua origem comum, origem essa que não invalida a circunstância de se tratar de verdadeiros direitos subjetivos, como tal merecedores de uma proteção direta por parte de normas jurídicas”.
Com efeito, nesta última hipótese, estar-se-á perante “um feixe de interesses, que pode ser tratado coletivamente, sem prejuízo da permanência da tutela clássica, individualizada para cada qual. Daí que "a pedra de toque da distinção" (relativamente aos interesses difusos) seja a da divisibilidade (direitos individuais homogéneos) ou indivisibilidade (interesses difusos) – pois na primeira situação cada pretensão, uma vez individualizada, pode ter tratamento diverso, ao passo que na segunda a solução será necessariamente una para todos”[6].
No caso das associações privadas, o fundamento da legitimidade para exercício da ação popular assenta na sua natureza estatutária desinteressada e no seu objeto social, cingindo-se, por isso, a sua legitimidade processual aos litígios respeitantes aos bens e valores constitucionais para cuja defesa expressamente se tenham constituído.
O artigo 160.º, n.º 1, do Código Civil – aplicável, em geral, às pessoas coletivas de natureza privada – estabelece que “A capacidade das pessoas coletivas abrange todos os direitos e obrigações necessários ou convenientes à prossecução dos seus fins.”.
Atento o princípio da especialidade do fim, ínsito no artigo 160.º, n.º 1 do Código Civil, a capacidade judiciária e, consequentemente, a legitimidade processual das associações privadas encontra-se condicionada pelo seu escopo social, sendo certo que só nos casos em que tenham sido constituídas para defesa de bens e valores constitucionais não individualizáveis poderão tais entidades a agir sob a égide da legitimidade conferida pelos artigos 9.º, n.º 2, e 73.º, n.º 1, do CPTA.
Em rigor, quando em defesa de interesses coletivos – v.g. no caso de interesses económicos dos associados – tais associações atuam no âmbito de uma ação de grupo e não de uma ação popular, já que como exercício do direito de ação não visam a tutela de outros interesses que não os dos associados, tendo, neste caso, aplicação o critério-regra do interesse processual, previsto no artigo 73.º, n.º 1, do CPTA, onde se inclui a legitimidade processual destas entidades para peticionar a declaração da ilegalidade de normas administrativas, com força obrigatória geral.
Utilizando as palavras de Carlos Cadilha, dir-se-á que “quando um ente associativo pretende exercer o direito de ação para defesa de um interesse coletivo, entendido como um interesse comum referenciado a valores jurídico-económicos (…) dos seus associados, ou para a defesa coletiva de interesses individuais dos associados, o que está em causa é a legitimidade processual baseada num interesse pessoal (…), contando que se trate, em qualquer caso, de interesses que à associação caiba prosseguir por atribuição estatutária”[7].
Efetivamente, do confronto das normas previstas nos n.os 1 e 2 do artigo 73.º CPTA com o disposto no artigo 72.º, n.º 2, do mesmo Código resulta que a amplitude dos efeitos da declaração de ilegalidade de normas imediatamente operativas distingue-se, não em função da natureza (particular ou difusa) do interesse invocado no exercício do direito de ação, mas antes em razão do plano (legal ou constitucional) em que assenta o juízo sobre a sua alegada invalidade, sendo que, no caso de o pedido se fundar na inconstitucionalidade direta ou na ilegalidade qualificada (cfr. artigo 281.º, n.º 1, da CRP]), só será admissível a formulação do pedido de declaração de ilegalidade das normas regulamentares impugnadas, com efeitos circunscritos ao caso concreto.
Como refere J.C. Vieira de Andrade – são as condições legais da impugnação que variam “conforme se peça a declaração de ilegalidade com força obrigatória geral ou com efeitos circunscritos ao caso concreto (artigo 73.º, nºs 1 a 4).
Assim, a declaração com força obrigatória geral pode ser pedida por todos os que dispõem de legitimidade, incluindo os interessados "prejudicados", desde que as normas sejam imediatamente operativas” [8].
E, em rigor – como referem Mário Aroso de Almeida e Carlos Cadilha[9] a propósito da legitimidade ativa para impugnação de normas –, “no conceito de lesado deverão considerar-se incluídas, não só, naturalmente, as pessoas coletivas privadas, mas também as próprias pessoas coletivas públicas, relativamente aos interesses que lhes cumpra defender. Essa solução surge, por paralelismo com o que dispõem os artigos 55.º, n.º 1, alínea c), e 68.º, n.º 1, alínea b), também ressalvados pelo artigo 9.º, n.º 1”.
Assim, tendo em linha de conta o que acima se referiu, nomeadamente, quanto à delimitação da capacidade judiciária e, consequentemente, da legitimidade processual pelo objeto estatutário, ter-se-á de concluir que – desde que atuem em representação dos interesses que expressamente se lhe encontram confiados pelos seus estatutos – as associações privadas possuem legitimidade ativa para, quer em defesa judicial dos direitos e interesses dos seus associados (diretamente prejudicados pela vigência de normas), quer em defesa de interesses difusos (nomeadamente, os previstos nos artigos 52.º, n.º 3, da CRP e 9.º, n.º 2, do CPTA), deduzirem – ao abrigo do disposto no artigo 73.º, n.º 1, do CPTA – o pedido de declaração de ilegalidade normas regulamentares, com força obrigatória geral.

Bibliografia
-        Ana Raquel Moniz, O Controlo Judicial do exercício do poder regulamentar no Código de Processo nos Tribunais Administrativos, in Comentários à Revisão do CPTA e do ETAF, Org. Carla Amado Gomes et alii, 2.ª edição, AAFDL, 2016;
-        Carlos Cadilha, A legitimidade processual dos entes associativos, in Cadernos de Justiça Administrativa, n.º 101, Cejur, Setembro/Outubro de 2013;
-        José Carlos Vieira de Andrade, A Justiça Administrativa, Lições, 14.ª edição, Almedina, 2015;
-        José Eduardo Figueiredo Dias, Os efeitos da sentença na lei de ação popular, in Revista CEDOUA, Ano II, 1.99;
-        José Lebre de Freitas e Isabel Alexandre, Código de Processo Civil anotado, vol. I, 3ª edição, Coimbra Editora, 2014;
-        Mário Aroso de Almeida e Carlos Cadilha, Comentário ao Código de Processo nos Tribunais Administrativos, 3.ª edição, revista, Almedina, 2010;
-        Mário Esteves de Oliveira e Rodrigo Esteves de Oliveira, Código de Processo nos Tribunais Administrativos e Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais Anotados, Volume I, Almedina, 2006.


Carolina Gomes
Aluna n.º 24367




[1] Cfr. Código de Processo Civil anotado, vol. I, 3ª edição, Coimbra Editora, 2014, pág. 70.
[2] Designada por Lei de Ação Popular (LAP).
[3] Cfr. Código de Processo nos Tribunais Administrativos e Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais Anotados, Volume I, Almedina, 2006, pág. 157.
[4] Idem.
[5] Cfr. O Controlo Judicial do exercício do poder regulamentar no Código de Processo nos Tribunais Administrativos, in Comentários à Revisão do CPTA e do ETAF, Org. Carla Amado Gomes et alii, 2.ª edição, AAFDL, 2016, pág. 501.
[6] Cfr. Os efeitos da sentença na lei de ação popular, in Revista CEDOUA, Ano II, 1.99, págs. 51-52.
[7] Cfr. A legitimidade processual dos entes associativos, in Cadernos de Justiça Administrativa, n.º 101, Cejur, Setembro/Outubro de 2013.
[8] Cfr. A Justiça Administrativa, Lições, 14.ª edição, Almedina, 2015, págs. 192-193.
[9] Cfr. Comentário ao Código de Processo nos Tribunais Administrativos, 3.ª edição, revista, Almedina, 2010, pág. 494 e 495.

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