A DELIBERAÇÃO
N.º 1572/2017 DA COMISSÃO NACIONAL DE PROTEÇÃO DE DADOS
Cabe, antes de mais, referir que a Comissão Nacional
de Proteção de Dados é uma entidade administrativa independente dotada de
poderes de autoridade, sendo que as suas decisões têm força obrigatória e são
passíveis de reclamação e de recurso para o Tribunal Central Administrativo.[1]
Há que fazer um breve enquadramento para referir, em
primeiro lugar que, veio o Gabinete do Ministro da Administração Interna
solicitar à Comissão Nacional de Proteção de Dados que se pronuncie acerca da
eventual divulgação pública do capítulo 6 do relatório intitulado “O complexo
de Incêndios de Pedrógão Grande e Concelhos Limítrofes, iniciado a 17 de Junho
de 2017”.[2]
Neste âmbito, no quadro nos incêndios de Pedrogão
Grande, a Comissão Nacional de Proteção de Dados vetou a publicação integral de
um dos capítulos do relatório sobre o acontecimento, de forma contraditória
dito por alguns.[3] Por um lado, a CNPD
considera relevante o acesso às informações sobre o que falhou durante tal
acontecimento; por outro há que assegurar a proteção da privacidade das pessoas
afetadas. Deste modo, a CNPD considera que a revelação do capítulo em falta é
de “interesse público importante” sendo, igualmente importante que fosse
divulgado para que a opinião pública pudesse aferir do cumprimento das
atribuições do Ministério da Administração Interna.[4]
Faremos esta análise por partes. Em primeiro lugar,
vamos aferir se o ato da CNPD de vetar a publicação integral do relatório é ou
não um ato administrativo passível de ser impugnado. Seguidamente, aferiremos
dos direitos e interesses em causa neste panorama. Por último, uma análise
objetiva acerca da ponderação dos direitos e interesses aferidos anteriormente
para que se encontre uma fundamentação para a decisão da CNPD.
O ATO DA
COMISSÃO
A CNPD decidiu, através da deliberação referida
anteriormente pela não revelação do capítulo 6 do relatório. Mas e se houver
alguém com interesse em que o capítulo seja revelado? Será esta decisão um ato
administrativo passível de conduzir à sua impugnação? Vejamos.
O art. 50.º/1 CPTA reporta-se à impugnação de atos
administrativos, mas, em primeiro lugar há que existir um ato administrativo
passível de ser impugnado junto dos tribunais administrativos.[5]
O conceito de ato administrativo decorre, atualmente
do art. 148.º CPA, sendo a decisão que, no exercício de poderes
jurídico-administrativos, visa produzir efeitos jurídicos externos numa
situação individual e concreta, independentemente da natureza da entidade que o
pratique e da forma sob a qual seja praticado. Um elemento determinante na
definição de ato administrativo é o conteúdo decisório manifestando uma
resolução determinante do futuro de certos acontecimentos ou o sentido de
condutas a adotar.[6]
Os atos administrativos visam produzir efeitos
externos. Segundo o professor Mário Aroso de Almeida, a introdução do requisito
da eficácia externa no conceito de ato administrativo exclui da categoria os
atos decisórios praticados no âmbito de relações intra-administrativas.[7]
Pode ainda acrescentar-se que a impugnabilidade dos
atos não depende da forma sob a qual eles tenham sido praticados, em função do
art. 268.º/4 CRP. Assim se distingue no âmbito dos atos jurídicos, os que são
adotados sob a forma legislativa, aqueles que devem ser qualificados como
legislativos, daqueles que são apenas formalmente legislativos mas contêm
decisões materialmente administrativas. [8]
Um ato para que seja qualificado como administrativo
não lhe basta ser individual e concreto, tem também de proceder do exercício da
função administrativa que tem um caráter secundário que se traduz na não
interferência na formulação das escolhas essenciais da coletividade política,
na necessidade de que as suas decisões encontrem fundamento em tais escolhes e
de que não as contrariem.[9]
Será, então de concluir pela existência de um ato
administrativo que pode ser impugnado, visto preencher todos os pressupostos
anteriormente referidos.
Porém, para o que aqui importa, há que aferir da
legitimidade ativa para este tipo de ação.
LEGITIMIDADE
ATIVA
Há que olhar ao artigo 55.º CPTA. Para esta
situação, levanta-se a questão de saber quem serão os sujeitos privados que
podem impugnar o ato. Por outras palavras, está em causa o exercício do direito
de ação por privados, que atuam para a defesa de interesses próprios, mediante
a alegação da titularidade de posições subjetivas de vantagem.[10]
Apesar de existirem outras possibilidades de impugnação deste ato quanto à
legitimidade ativa, é nesta perspetiva que queremos analisar a questão.
Ora, a Comissão Nacional de Proteção de Dados,
apresentou alguns motivos que explicaram a sua decisão em ocultar o capítulo 6
do relatório, nomeadamente o facto de que a publicação da informação contida
nesse capítulo revelar aspetos da vida privada das pessoas por ele abrangidas e
até danos de saúde. Note-se que a publicação destas informações é proibida pelo
artigo 35.º/4 CRP e pelo artigo 7.º/1 Lei da Proteção de Dados Pessoais.[11]
Por outro lado, para quem defende a divulgação pública do relatório escuda-se
antes no interesse dos familiares diretos das vítimas em perceber o que
aconteceu para efeitos de acionar as indemnizações devidas e no interesse
público de controlo democrático da atuação das autoridades ou das entidades
encarregadas de prestar serviços públicos, numa lógica de transparência da
Administração.[12]
A questão que, no fundo, se pretende analisar é a
ponderação entre a proteção da vida privada dos que sofreram diretamente os
danos causados por este acontecimento e o interesse dos familiares diretos das
vítimas bem como o interesse público. Esta é uma questão que se coloca para que
se entenda se é coerente que se possa impugnar um ato que protege direitos de
quem poderá não mais ter a possibilidade de se defender.
A primeira nota a fazer é relativa ao facto de se
associar à legitimidade o conceito de interesse.[13]
Note-se ainda que, o interesse pode ter vários significados, podendo
traduzir-se numa necessidade, numa ideia de algo bom para o seu titular ou numa
razão para querer.[14]
Segundo o professor José Duarte Coimbra, a melhor forma de entender o conceito
de “interesse” será reconduzi-lo a razões jurídicas para querer impugnar o ato.
Assim, a base da legitimidade ativa será uma posição jurídica subjetiva e nunca
meros interesses de facto – só terá legitimidade ativa para impugnação de atos
administrativos aquele que vir uma sua posição jurídica afetada pela emissão ou
subsistência desse ato.[15]
Há, então, que verificar o que significa ter um
“interesse direto e pessoal”, expressão utilizada pelo artigo 55.º/1 alínea a)
CPTA que aqui se quer analisar: interesse direto na medida em que o recurso
implique a anulação ou declaração de nulidade de ato jurídico que constitua um
obstáculo à satisfação de pretensão anteriormente formulada pelo recorrente;
interesse pessoal no sentido em que o recorrente esperasse do recurso uma
utilidade concreta para si próprio.[16]
PONDERAÇÃO DE
INTERESSES E DE DIREITOS
Portanto, temos vários direitos e interesses em
jogo: direito à reserva da vida privada por parte de quem sofreu os danos
causados, o direito às indemnizações, o direito à compreensão de todo a
situação conjuntural, o interesse público e o interesse direto e pessoal de que
necessita o artigo 55.º CPTA.
Mas vejamos, por vezes, a palavra “interesse” é
utilizada para designar apenas interesses movidos pelo egoísmo e, por vezes,
apenas interesses “pecuniários”.[17]
Para haver um interesse é necessária uma certa relação entre quem tem o
interesse e o mundo.[18]
Reformulando, ter interesse em alguma coisa é ter
necessidade de X. Mas, do que é que se trata esta necessidade? Sabe-se que
apenas as necessidades não instrumentais relevam para esta definição
revelando-se como “verdadeiras necessidades”.[19] O
que está em causa é que, para aferir uma certa necessidade de alguém, basta
considerarmos o indivíduo em si mesmo com as suas caraterísticas intrínsecas, e
não o resto do mundo, tal como se faz por exemplo, nas necessidades de comer.
Contudo, o conceito de necessidade abrange mais do que esta realidade,
abrangendo, igualmente as realidades de relação com o mundo.[20]
Em suma, saber se alguém tem um interesse em certa
coisa é saber se essa pessoa tem justificações ou fundamentos para ter tal
coisa.[21]
Pergunta-se, então, qual o interesse prevalecente
nesta situação. Sendo que, temos o interesse de quem já não mais se pode
defender; temos o interesse de quem quer ver as suas vidas resolvidas através
de uma explicação para o sucedido; temos o interesse de quem quer ver
reembolsados os prejuízos sofridos; temos o interesse público. Utilizando como
fundamentação a existência de interesses egoístas, anteriormente referidos,
qual é o interesse, neste panorama, que se revela prevalecente? A resposta só
pode ser uma.
Assim se questiona se faz sentido atribuir
legitimidade, e consequente interesse (processual) a quem impugne um ato e
descarte o interesse mais importante, ou pelo menos, prevalecente, mesmo não
sendo esse o seu interesse primário. Delimitar interesses relevantes para certo
efeito é delimitar razões admissíveis para esse efeito.[22]
[1]
www.cnpd.pt
[2] Comissão
Nacional de Proteção de Dados, Deliberação N.º 1572/2017, p. 1.
[3]
Expresso, Ministério da Administração
Interna obrigado a divulgar o que falhou no fogo de Pedrógão, 22/11/2017.
[4] Sábado, Pedrógão Grande, Associação de Vítimas de
Pedrógão quer divulgação de todo o relatório, 22/11/2017.
[5] Mário
Aroso de Almeida, Manual de Processo
Administrativo, 3ª Ed., Almedina, 2017, p. 265.
[6] Mário
Aroso de Almeida, Manual de Processo…, p.
266-268.
[7] Mário
Aroso de Almeida, Manual de Processo…, p.
269.
[8] Mário
Aroso de Almeida, Manual de Processo…, p.
271.
[9] Acórdão
Supremo Tribunal Administrativo, Processo nº 0637/15, Relator: Maria Benedita
Urbano, de 02/07/2015.
[10] Vasco
Pereira da Silva, O Contencioso
Administrativo no Divã da Psicanálise, Ensaio Sobre as Ações no Novo Processo
Administrativo, 2ª ed., Almedina, 2009, p. 369.
[11]
Comissão Nacional de Proteção de Dados, Deliberação N.º 1572/2017, p. 5.
[12]
Comissão Nacional de Proteção de Dados, Deliberação N.º 1572/2017, p. 6.
[13] José
Duarte Coimbra, A legitimidade do
Interesse na Legitimidade Ativa, p. 5.
[14] Pedro
Múrias, O que é um interesse, no sentido
que geralmente interessa aos Juristas, in Estudos em Memória do Professor Doutor Saldanha Sanches, p. 829.
[15] José
Duarte Coimbra, A legitimidade…, p.
13.
[16] José
Duarte Coimbra, A legitimidade…, p.
7.
[17] Pedro
Múrias, O que é um interesse…, p.
834.
[18] Pedro
Múrias, O que é um interesse…, p.
838.
[19] Pedro
Múrias, O que é um interesse…, p.
843.
[20] Pedro
Múrias, O que é um interesse…, p.
844.
[21] Pedro
Múrias, O que é um interesse…, p.
854.
Comentários
Enviar um comentário