Avançar para o conteúdo principal

A Contagem de Prazos para Anulação de Actos Administrativos por Particulares no Antigo e no Novo CPTA

O CPTA de 2002, quanto aos prazos para impugnar actos administrativos anuláveis, determinava no seu artigo 58º nº 3 que, supletivamente, valeriam as regras do Código de Processo Civil para a contagem de prazos. Neste diploma, por sua vez, o artigo 138º estipula a continuidade dos prazos (independentemente de dias úteis ou não), excepcionando no entanto os períodos de férias judiciais, durante os quais, para prazos de duração inferior a seis meses, se suspenderia o prazo.

    Inicialmente, esta solução legal suscitou algumas dúvidas nos tribunais, pois os prazos para anulação por recorrentes que não o Ministério Público (solução que aliás se mantém no actual CPTA) eram contados como sendo de três meses. Para os casos em que seria necessária a suspensão em virtude das férias judicias, não seria, portanto, possível continuar a contar o prazo em meses. No entanto, tanto a doutrina[1] como a jurisprudência[2] acabaram por resolver esta questão, ao converter o prazo de três meses em 90 dias, quando essa situação ocorresse[3].

Com a revisão de 2015, o novo regime do CPTA, em vez de remeter para o regime do CPC, passou a remeter supletivamente para o regime de contagem de prazos do Código Civil (previsto no seu artigo 279º), segundo o art. 59º nº 2. Uma das diferenças entre ambos os regimes é, precisamente, a absoluta continuidade do prazo, não se suspendendo o mesmo durante as férias judiciais. Assim, o regime actual retorna à solução que vigorava na antiga Lei de Processo dos Tribunais Administrativos e Fiscais, que no seu art. 28º nº 2 também remetia supletivamente para o Código Civil.

O preâmbulo do Decreto-Lei nº 214-G/2015, de 2 de Outubro, no seu ponto 7, vem a justificar a alteração na medida em que esta “assegura maior segurança e certeza”, dado que “a solução que o CPTA de 2002 estabelecia não tinha racionalidade que o justificasse”. Esta solução prende-se no facto de a propositura da acção de impugnação não se enquadrar no âmbito do processo, pois tecnicamente só após essa proposta se pode considerar a existência de um processo propriamente dito[4]. Assim, o prazo para colocar um pedido de impugnação vale enquanto prazo substantivo, e não enquanto prazo processual[5].

Por não haver lugar à suspensão do prazo caso as férias judiciais decorram durante a contagem do prazo, poder-se-iam suscitar dúvidas caso o termo do prazo para a propositura da acção acontecesse durante as férias judiciais. Se fosse caso disso, haveria aqui uma situação de desigualdade entre particulares, dado que sairia prejudicado quem não pudesse intentar a acção durante as mesmas, tendo apenas a possibilidade de o fazer antes do seu início.

Esta situação de desigualdade seria especialmente gritante quanto à impugnação de actos administrativos anuláveis intentada por particulares. Isto porque só poderia ser colocada em tribunal nos três meses seguintes à prática do acto administrativo, e tendo em conta que as férias judiciais poderiam durar até um mês e meio (segundo o artigo 28º da Lei de Organização do Sistema Judiciário, ex vi art. 7 do ETAF), o particular poderia ficar sujeito a um prazo manifestamente reduzido, o qual atentaria à tutela jurisdicional efectiva dos seus direitos (268º nº 4 da Constituição da República Portuguesa).

No entanto, o Código Civil, na segunda parte da alínea e) do art. 279º, define que, havendo férias judiciais, no final do prazo, estas se equiparam aos domingos e feriados, permitindo ao particular direito que se pretenda exercer judicialmente, que o seja no dia útil seguinte ao fim das mesmas[6].

José Duarte Coimbra (e, no mesmo sentido, Marco Caldeira), em comentário ao Anteprojecto de Revisão que resultou no actual CPTA, critica esta opção do legislador pelo regime do Código Civil. O autor considera que, não obstante os problemas de contagem de prazos que surgiram aquando do início da vigência do CPTA anterior (referidos supra), os mesmos foram resolvidos, não causando quaisquer problemas na aplicação do regime. Deste modo, tanto os tribunais como as partes do processo já se encontrariam habituados a essa solução normativa, não fazendo, portanto, sentido em voltar atrás.

Neste sentido, a razão de alteração dada no preâmbulo do Decreto-Lei que aprova o CPTA de 2015, baseada na segurança, encontrar-se-ia, portanto, subvertida, sendo por outro lado relevante, segundo essa mesma segurança jurídica, a manutenção da solução do CPTA de 2002.

Outra das razões pela qual é defendida a manutenção do regime anterior, era a do facto de uma parte das acções colocadas acabar por sair prejudicada. Com efeito, considerando o período de férias judiciais, um particular no actual regime poderia ter um prazo para pedir a impugnação de um acto anulável até um mês e meio inferior, quando comparado com o regime anterior[7].

O direito ao acesso dos particulares aos tribunais é um direito fundamental, constitucionalmente protegido (art. 20º nº 4 CRP), e, dentro desse direito, prevê-se um processo equitativo, baseado na tutela jurisdicional efectiva. Assim, a todos os particulares deve ser garantido um igual acesso aos tribunais[8].

No entanto, quanto às diferentes soluções de regime para a determinação do prazo, há que ter em conta a igualdade possível dos particulares: ao longo do ano, derivado de vicissitudes como as férias judiciais, ou os domingos e feriados, em que os tribunais se encontram fechados, os particulares não podem pura e simplesmente colocar os seus direitos em juízo. Por isso mesmo se consagram regras como a suspensão do prazo nesses períodos, ou a passagem do último dia do prazo para o primeiro dia útil seguinte.

Estas regras, apesar de não prejudicarem a igualdade dos particulares perante a Administração (a chamada “igualdade de armas”)[9], prejudicam a igualdade nos particulares entre si. Esta discriminação é positiva, pois não procura fazer prevalecer injustificadamente um conjunto de particulares perante os restantes, mas sim evitar que aqueles, no cumprimento da lei, não saiam prejudicados por motivos que lhes sejam alheios e que não justifiquem uma diferença de tratamento da lei.

Neste sentido, o CPTA actual acabou por harmonizar estas diferenças de tratamento, dado que, tratando-se de prazos substantivos e não processuais, os particulares não se encontram totalmente dependentes do funcionamento dos tribunais para redigir uma petição inicial. A única questão que releva para garantir o acesso dos particulares aos tribunais é a data do termo do prazo, finda a qual não podem intentar a acção de anulação de um acto administrativo. Assim, não parece que a suspensão dos prazos durante férias judiciais se justifique, dado que já não estamos perante uma mera protecção dos particulares prejudicados pelas mesmas, mas sim uma vantagem desnecessária e injustificada (que, como já foi referida antes, pode-se estender até um mês e meio, no caso das férias de Verão).

José Coimbra considera, ainda assim, que esta alteração “(…) representa uma considerável diminuição da extensão [dos prazos]”[10], sendo que não traz a “segurança jurídica” que justifica o novo regime do CPTA, segundo o ponto 7 do preâmbulo do Decreto-Lei nº 214-G/2015.

No entanto, não deve ser tida em conta a diminuição da extensão média dos prazos, pois não há uma redução prevista na lei que afecte todos os particulares, pois estes mantêm o seu direito de pedir a impugnação de actos anuláveis no prazo de três meses. O tempo que lhes for conferido para além três meses, sê-lo-á apenas pelo facto de, caso contrário, esse prazo não lhes poder ser garantido.

Por exemplo, no regime anterior, um prazo que começasse a contar a partir de 1 de Julho, suspendia-se entre 16 de Julho e 31 de Agosto (segundo o art. 28º da LOSJ), e terminava a 15 de Novembro. No regime actual, o mesmo terminaria a 1 de Outubro. O direito de o particular colocar a acção nos três meses previstos na lei não é prejudicado, pelo que o prolongamento do prazo é injustificado.

Por outro lado, pode haver situações em que o prazo tem de ser necessariamente mais longo, principalmente se o termo do prazo calhar no início das férias judiciais.

Assim, há maior “segurança e certeza” na medida há uma menor desigualdade de tratamento entre particulares, na impugnação de actos anuláveis. Questão diferente é a de se considerar se o prazo de três meses é suficiente ou não, e se o mesmo deve ser aumentado, não apenas quanto aos que, por força das circunstâncias, tenham esse prazo alargado, mas em relação a todos os particulares.

Há ainda uma questão que, podendo não vir a ter relevância prática, há que, não obstante, mencionar, relativamente à aplicação do Código Civil ao invés do regime do Código de Processo Civil. Como já foi dito, o Código Civil, na alínea e) do art. 279º, consagra uma norma que, sendo similar à do art. 138º, nº 2, salvaguarda os particulares no seu direito de acesso aos tribunais, remetendo para o dia útil seguinte às férias judiciais. No entanto, o mesmo nada dispõe relativamente às tolerâncias de ponto, as quais segundo o CPC não provocam a suspensão do prazo, como é o caso das férias judiciais, mas são tratadas como havendo um encerramento dos tribunais, pelo que o termo dos prazos, caso ocorra no dia em que é concedida tolerância de ponto, passa também para o dia útil seguinte (138º, nº 3).

Há que ter em conta o facto de, apesar de os artigos 138º, nº 2 do CPC, e 279º e) do CC terem normas similares, as mesmas têm algumas diferenças: enquanto que a primeira remete para o dia útil seguinte o termo dos prazos quando “os tribunais estiverem encerrados”, a segunda menciona apenas os domingos, feriados e férias judiciais. Podemos daqui aferir que o art. 138º do CPC, mesmo que não previsse os casos do nº 3, a abrangência do seu nº 2 poderia permitir ainda assim que, nos casos em que as tolerâncias de ponto ditassem o encerramento total dos tribunais, o termo do prazo passasse para o dia útil seguinte. O CC, no entanto, ao delimitar de uma maneira menos genérica, não admite estes casos pela letra da lei.

Apesar de as partes poderem alegar um justo impedimento, por via do art. 58º, nº 3 al. a) do CPTA, nos termos do art. 140º, nº 1, 1ª parte, do CC, e de este poder ser conhecido oficiosamente pelo tribunal (140º, nº 3), faria sentido que se previsse directamente a tolerância de ponto nos mesmos termos do art. 138º CPC, para o regime aplicável pelo CPTA.

Uma situação similar suscitou algumas dúvidas na jurisprudência, quanto ao regime do Código de Processo Civil anterior, tendo sido inclusive alvo de uniformização de jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça. Na altura em que o acórdão[11] foi proferido, o art. 144º, nº 3 do CPC ditava: “O prazo suspende-se, no entanto, durante as férias, domingos e dias feriados”[12]. A redacção do art. 146º, quanto ao justo impedimento, era similar à redacção actual[13]. O STJ, neste caso, não admitiu a interpretação analógica do art. 144º, nº 3 para as tolerâncias de ponto, mas achou necessário que a existência de justo impedimento nestes casos fosse alvo de uniformização de jurisprudência.

O actual CPC, no art. 138º, nº 3, acaba por resolver a questão de uma maneira similar à do acórdão em questão, pois refere-se especificamente aos casos de tolerância de ponto, ao invés da situação de justo impedimento, mais genérica, que está sujeita a decisão ou conhecimento do juiz. A meu ver, caso fosse aplicável esta norma para os prazos para impugnação de actos administrativos, conferir-se-ia uma maior segurança jurídica aos particulares.





[1] Mário Aroso de Almeida, Carlos Cadilha, Comentário ao Código de Processo nos Tribunais Administrativos, 3ªedição, Almedina, 2010, pág. 388
[2] Acórdão do Tribunal Central Administrativo Norte, processo 0221/15.1BEBRG, 03/06/2016, http://www.gde.mj.pt/jtcn.nsf/89d1c0288c2dd49c802575c8003279c7/6be9d9648a76655a80257ff0003f19e0?OpenDocument
[3] Marco Caldeira, A Impugnação de Actos no Novo CPTA: Âmbito, Delimitação e Pressupostos, in Comentários à Revisão do ETAF e do CPTA, AAVV, AAFDL Editora,2016, pág. 261; José Duarte Coimbra, A Impugnabilidade de Actos Administrativos no Anteprojecto de Revisão do CPTA, in O Anteprojecto de Revisão do CPTA e do ETAF em debate, AAVV, AAFDL Editora, 2014, pp. 372-373
[4] Marco Caldeira, op. cit., pág. 260
[5] José Duarte Coimbra, op. cit., pág. 373
[6] Mário Aroso de Almeida, Manual de Processo Administrativo, 3ª edição, Almedina, 2017, p. 303
[7] José Coimbra, op. cit., pp. 373-374, nota 44
[8] João Tiago Silveira, Mecanismos de agilização processual e princípio da Tutela Jurisdicional Efetiva no Contencioso Administrativo, Tese de doutoramento, Universidade de Lisboa, Faculdade de Direito, 2017, pág. 303
[9] José Carlos Vieira de Andrade, Justiça Adinistrativa, Almedina, 2017, 16ª edição, pp. 153 ss
[10] José Coimbra, op. cit., pág. 374, nota 44, in fine
[11] STJ, processo nº 048826, 10/10/1996, juiz relator Augusto Alves



Bibliografia

Mário Aroso de Almeida, Carlos Cadilha, Comentário ao Código de Processo nos Tribunais Administrativos, 3ªedição, Almedina, 2010

Mário Aroso de Almeida, Manual de Processo Administrativo, 3ª edição, Almedina, 2017

Marco Caldeira, A Impugnação de Actos no Novo CPTA: Âmbito, Delimitação e Pressupostos, in Comentários à Revisão do ETAF e do CPTA, AAVV, AAFDL Editora,2016, pp. 245 ss

José Duarte Coimbra, A Impugnabilidade de Actos Administrativos no Anteprojecto de Revisão do CPTA, in O Anteprojecto de Revisão do CPTA e do ETAF em debate, AAVV, AAFDL Editora, 2014, pp. 372 ss

João Tiago Silveira, Mecanismos de agilização processual e princípio da Tutela Jurisdicional Efetiva no Contencioso Administrativo, Tese de doutoramento, Universidade de Lisboa, Faculdade de Direito, 2017

José Carlos Vieira de Andrade, 16ª edição, Justiça Administrativa, Almedina, 2017


Jurisprudência

Acórdão do Tribunal Central Administrativo Norte, processo nº 0221/15.1BEBRG, 03/06/2016, juiz relator Frederico Macedo Branco:

Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, processo nº 048826, 10/10/1996, juiz relator Augusto Alves:

Legislação

Código de Procedimento dos Tribunais Administrativos (Lei de Processo dos Tribunais Administrativos e Fiscais; CPTA de 2002 e de 2015)Estatuto dos Tribunais Administrativos; Constituição da República Portuguesa; Código Civil; Código de Processo Civil, Lei de Organização do Sistema Judiciário

Código de Processo Civil de 1961 (alterações até 1994):



Miguel Simões, subturma 12, nº 26678

Comentários

Mensagens populares deste blogue

A prevalência da substância sobre a forma

A prevalê ncia da substância sobre a forma (Princípio pro  actione ) ​ O  contencioso administrativo é pautado por uma igualdade de partes, cuja ideia se encontra concretizada no artigo 6º do Código de Processo   nos   Tribunais   Administrativos (CPTA).   Este princípio deve-se a razões históricas,   pois   não só o Estado decidiu submeter-se ao direito, como também e sobretudo,   porque a jurisdição administrativa passou de um objetivo de proteger a Administração face ao controlo dos tribunais,   para o objetivo de garantir os direitos fundamentais dos particulares.   Deste modo, o contencioso administrativo plenamente  jurisdicionalizado ,   isto é, independente da Administração Pública, possibilitou   que   os   administrados desencadeassem processos administrativos com o intuito de alegar,   perante os tribunais administrativos, a ofensa de um direito ou interesse legalmente protegidos, ...

A intimação para prestação de informações, consulta de documentos e passagem de certidões

I.                     Introdução: Até à reforma de 2015, os pedidos que podiam ser apresentados perante a jurisdição administrativa podiam sê-lo por meio de processo comum ou por meio de formas de processo especiais. Assim, havia uma dualidade [1] entre a ação administrativa comum – todos os litígios no âmbito da jurisdição administrativa que não eram objeto de regulação especial – e a ação administrativa especial – sendo esta de três tipos: impugnação de atos; condenação à prática de ato legalmente devido; impugnação e declaração de ilegalidade da omissão das normas. No entanto, com a reforma de 2015, esta dualidade veio a desaparecer, passando todos os processos não-urgentes a tramitar sob a forma de ação administrativa, única e exclusiva forma de processo (note-se, “não urgente”). Porém, isto não quis dizer que existisse apenas esta ação administrativa uma vez que também era possível...

O segundo “trauma” do Direito Administrativo: o Acórdão Blanco

O Direito Administrativo passou por dois “acontecimentos traumáticos” aquando do seu surgimento, o que permite explicar alguns dos problemas com que se defronta atualmente. O seu primeiro “trauma” resulta do nascimento do Contencioso Administrativo, na Revolução Francesa. Concebido como “privilégio de foro” da Administração, não se destinava a garantir a proteção dos direitos dos particulares, mas a assegurar a garantia da Administração e da defesa dos poderes públicos. Deste modo, cabia à própria Administração julgar-se a si mesma, com base num princípio da separação de poderes que levou à criação de um “juiz doméstico” ou “de trazer por casa”, dado que os tribunais judiciais estavam proibidos de interferir na esfera da Administração ( troubler, de quelque manière que ce soit, les opérations des corps administratifs ). Instaurou-se, assim, um sistema no qual imperava uma “confusão entre a função de administrar e a de julgar”. É precisamente deste Contencioso Administrativo, d...