Tutela cautelar no âmbito dos atos
administrativos de aplicação de sanções militares
I) Breve
alusão à evolução da Defesa Militar como parte da Administração pública
No período de transição posterior a 1976, da organização do poder político
então estabelecida resultava uma clara separação entre a Administração Pública
e as Forças Armadas. Esta situação viria a ser alterada com a Lei
Constitucional nº1/82, de 30 de Setembro, eliminando esta separação, tal como
assinalado pela doutrina e jurisprudência.
De facto, e como refere o Acórdão do Tribunal Constitucional nº33/2002, com
a inserção sistemática do artigo 270.º e a alteração da denominação do Título X
da Parte Terceira da Constituição de “Forças Armadas” para “Defesa Militar”
“ficou sublinhada a recusa de uma concepção das Forças Armadas como uma
comunidade separada de ordenamento interno autónomo[1].
Desta conclusão resulta a importante consequência de que o direito
disciplinar militar está abrangido pelo direito sancionatório público, pelo que
se lhe aplica o Art.269.º/3, que dispõe, sobre o regime da função pública, que
“Em processo disciplinar são garantidos ao arguido a sua audiência e defesa.”
Com a entrada em vigor do novo regime do CPTA, aconteceu com alguma
recorrência que alguns militares recorressem à justiça administrativa em
matérias de administração militar e, em particular, para questionar a
legalidade das sanções disciplinares previstas no Regulamento de Disciplina
Militar, a si impostas. Ora, as decisões tomadas, em grande parte favoráveis
aos militares punidos, não eram vistas com bons olhos por parte das chefias
militares.
O
desenvolvimento seguinte de toda esta situação deu-se com a aprovação da Lei nº
34/2007 de 13 de Agosto (mais tarde complementada com a Lei nº 79/2009, de 13
de Agosto), que veio introduzir um regime especial, de excepção, “aplicável aos
processos cautelares e de intimação para protecção de direitos liberdades e
garantias, quando intentados com referência a actos administrativos de
aplicação de sanções deisciplinares, praticados ao abrigo do Regulamento de
Disciplina Militar”[2].
É nestes termos
que o Professor Vieira de Andrade afirma estarmos perante uma legislação
provocada decorrente da necessidade politica de garantir a especial autoridade
dos atos de disciplina militar perante uma jurisprudência que ameaçava não ser
sensível a esta diferença. Assim a lei estabelece um regime excecional para os
processos cautelares em que estejam em causa atos administrativos de aplicação
de sanções disciplinares no âmbito da organização militar.
II)
Excecionalidade da tutela cautelar no âmbito
militar
A Lei nº.34/2007, de 13 de Agosto, entretanto complementada, com
a Lei nº.79/2009, de 13 de Agosto, veio como já mencionado, introduzir um
regime especial aplicável aos processos cautelares e de intimação para promoção
de direitos, liberdades e garantias, quando intentados com referência a atos
administrativos de aplicação de sanções disciplinares, praticados ao abrigo do
Regulamento de Disciplina Militar.
O professor Mário Aroso de Almeida considera desde logo
lamentável que ao ser reconhecida a necessidade de introduzir soluções
particulares quanto a determinados aspetos do CPTA, se tenha seguido a via de
aprovação de diplomas avulsos e não a integração desses regimes particulares no
próprio Código, colocando, desse modo, em causa, sem qualquer necessidade, o
propósito codificador do diploma. Adianta ainda que mais lamentável é o
conteúdo do regime em causa, que surgiu em condições reprováveis e contendo
soluções de constitucionalidade muito discutível.
Neste
seguimento, será de perguntar então afinal com que intuito foi desenvolvida
esta legislação? Qual seria o seu objetivo? O Professor Guilherme da Fonseca afirma desde logo que a intenção do legislador foi a
de “limitar ou restringir os direitos fundamentais dos militares punidos
disciplinarmente com a aplicação do Regulamento de Disciplina Militar, em
especial, o direito fundamental de acesso à via judiciária, discriminando-os
negativamente, em relação com os trabalhadores da Administração Pública Civil.”
Ainda que
não fosse possível, sob pena de inconstitucionalidade, proibir o acesso dos
cidadãos que desempenhem funções militares a qualquer dos meios processuais
gerais, parece no entanto claro que esse mesmo acesso lhes foi dificultado pela
Lei nº.34/2007.
Esta restrição levantada quanto ao uso de meios
processuais está patente sobretudo quanto à providência cautelar da suspensão
de eficácia, prevista no artigo 128º CPTA, e que é a providência cautelar que
melhor pode garantir os direitos fundamentais dos militares, como iremos ver
infra.
Tendo em vista a comparação
com o sistema vigente no CPTA, cabe aludir às principais alterações e problemáticas
alterações trazidas pela Lei nº.34/2007 neste âmbito:
I)
A inaplicabililidade do regime previsto nos
termos do disposto do artigo 128º, não permitindo a proibição de execução, que
junto da generalidade dos atos administrativos decorre automaticamente do
conhecimento do respetivo pedido de suspensão de eficácia, a estes mesmos pedidos
que sejam praticados ao abrigo do Regulamento de Disciplina Militar (ART.2° da
Lei nº.34/07, de 13 de Agosto)
II) Estabelecem-se
critérios especiais para a adoção de decisão cautelar, em derrogação parcial ao
disposto no ART.120º do CPTA, que visam tornar mais exigente o decretamento da
providência.
As
providências cautelares em matéria de disciplina militar só poderão ser
decretadas quando:
1) haja fundado receio da constituição de uma
situação de facto consumado (excluindo o fundado receio da produção de
prejuízos de difícil reparação); 2) seja evidente a procedência da pretensão
formulada ou a formular no processo principal; e se 3) trate de um ato
reconduzivel a uma das hipóteses aí, taxativamente, definidas: ato
manifestamente ilegal, ato de aplicação de norma já anteriormente anulada ou um
ato materialmente idêntico a outro já anteriormente anulado ou declarado nulo
ou inexistente. (ART.3º da Lei nº.34/2007). Excluindo-se assim outras possíveis
situações de evidência, bem como os casos de incerteza, independentemente do
grau de probabilidade da procedência.
Portanto, qual será o sentido ou a ratio que pode estar subjacente à
diferenciação de tratamento de situações em que, se estivermos perante uma pessoa dita “normal”, ou seja, um civil, é suficiente,
para obter o decretamento da providência cautelar, que seja provável a procedência
da pretensão formulada ou a formular no processo principal (artigo 120º/1
CPTA), mas para um militar ela só pode ser decretada com o preenchimento
cumulativo dos critérios especiais e extremamente exigentes previstos no artigo
3.º da Lei em apreço?
Nas palavras
do Professor Guilherme da Fonseca, “fica esvaziado o efeito útil da providência
cautelar, com o risco de, na prática, os militares punidos terem de cumprir
integralmente as sanções disciplinares e só depois questioná-las nos processos impugnatórios,
como se a suspensão de eficácia desaparecesse de vez no horizonte para os
militares punidos, restando-lhes a impugnação normal do acto administrativo,
com os efeitos favoráveis perdidos no tempo.”
III) No que respeita ao decretamento provisório das
providências cautelares além de se reafirmarem os critérios específicos de
decisão cautelar ainda que com base em averiguação sumária a lei determina que
a providência nunca pode ser decretada sem audição da entidade requerida, ainda
que por meio de expedito ( artigo 4º da Lei).
Determina ainda que a não verificação
destes pressuposto especiais de decretamento da
providência não equivale a impossibilidade ou insuficiência de
decretamento provisório para efeitos de uso do processo de intimação para a proteção
de direitos liberdades e garantias. (artigo 5°/1 da Lei).
IV) Esta ultima referência ao disposto no artigo
5º/1, releva essencialmente no âmbito do processo urgente de intimação para
proteção de direitos, liberdades e garantias que é um meio processual que se destina
a obter uma decisão de mérito que assegure, numa situação concreta a proteção
daqueles direitos, liberdades e garantias, pois vem eliminar o requisito
negativo do artigo 109º do CPTA.
Quanto a este processo urgente, como relevo
e inovação que resultaram do CPTA, ele fica praticamente inutilizado para aqueles
militares, pois deixa de se poder conjugar o n.º 1 do artigo 109.º com o
disposto no artigo 131.º do citado Código. Dizendo-se, na verdade, que a não
verificação dos pressupostos do decretamento provisório de uma providência não
equivale à impossibilidade ou insuficiência do decretamento provisório, para
efeitos do referido artigo109.º, ficará sempre por demonstrar o requisito
negativo que é suposto na parte final do n.º1 do mesmo artigo 109.º.
No entanto o Professor Vieira de
Andrade considera a norma constante do artigo 5º/2 da Lei nº.34/2007, supérflua
porque, o requisito legal da impossibilidade ou insuficiência do decretamento
provisório de uma providência cautelar previsto no disposto do artigo 109º do
CPTA (conjugado com o artigo 131° do mesmo código), visa apenas diferenciar a
tutela urgente principal da tutela urgente cautelar e como é obvio, a nova
norma não pode significar a exclusão do uso da intimação quando haja
necessidade de uma decisão de mérito urgente no âmbito da disciplina militar.
V) Neste seguimento, e para finalizar a análise no
âmbito da intimação para proteção de direitos, liberdades e garantias é de
mencionar que o artigo 5º/2 da Lei em questão, estabelece um regime que não se
compadece com qualquer urgência, consubstanciando na denegação no domínio da
disciplina militar, do acesso a tutela jurisdicional em situações de especial
urgência, em termos que segundo o Professor Viera de Andrade se afiguram
desproporcionais e por isso desconformes com a garantia constitucional dos
artigos 268º/4 e 20º/5 da CRP.
Isto porque o respetivo artigo exige
aos assessores militares do Ministério Público que junto dos tribunais
administrativos emitam um parecer prévio, não vinculativo, relativamente aos
requerimentos de intimação para a proteção de direitos, liberdades e garantias,
requerimentos para adoção de providências cautelares e decisões que ponham
termo ao processo.
VI) Por último implicou especialidades em matéria de
competência. Procedeu-se à alteração das regras
da distribuição da competência em razão da matéria, prevista no termos do
disposto do artigo 7° da Lei 34/2007, de 13 de Agosto, dos tribunais
administrativos. Procede desde logo a
uma alteração significativa do sistema criado pelo ETAF, na medida em que,
sobre a disciplina militar, sobre o contencioso administrativo e sobre os
direitos fundamentais dos militares, os Tribunais Centrais Administrativos não
tinham nunca competência, em 1.º grau, para conhecer dos processos impugnatórios,
através da sua Secção de Contencioso Administrativo.
Face ao artigo 37.º daquele Estatuto, a sua competência estava reduzida aos
recursos jurisdicionais, pretendendo-se agora criar uma competência residual,
em 1.º grau, para um aspecto muito específico relativo a processos que têm a
ver com a “aplicação de sanções disciplinares de detenção ou mais gravosas”, só
porque isso vai permitir a intervenção de juízes militares.
A gravidade da situação veio a
acentuar-se com a publicação da já referida Lei nº.79/2009 de 13 de Agosto, que
no propósito de dar execução à previsão do ART.7º veio prever, em termos, que o
Professor Mário Aroso de Almeida, considera inaceitáveis, a dita forma de
“intervenção de assessores militares do Ministério Público junto dos tribunais
administrativos”
Neste ponto, bem como em todos os
anteriores, são abertas reiteradamente discussões sobre se estará em causa a
violação de princípios constitucionais da chamada constituição administrativa,
sendo que aqui essencialmente pelo disposto no artigo 211.º, n.º 3, da CRP que
prevê apenas, de forma expressa, que os juízes militares integrem a composição
dos tribunais de qualquer instancia que julguem crimes de natureza estritamente
militar, não lhes conferindo capacidade em termos contenciosos administrativos
em qualquer instância.
Conclusões finais
Parece irónico que o regime em análise, propositadamente
criado para superar dificuldades com que a administração militar se defrontou
ao ter de aplicar o novo CPTA, seja em grande parte violador direto de normas e
princípios constitucionais.
No mínimo, configura a violação de um dos vetores mais
importantes da designada Constituição administrativa, consagrado no disposto do
artigo 268º/4 da CRP – Direito fundamental à tutela jurisdicional efetiva – que
assiste a todos os cidadãos para defesa dos seus interesses legalmente
protegidos, nomeadamente através da adoção de medidas cautelares adequadas.
Este artigo conjugado com o principio geral de acesso ao
direito e aos tribunais, consubstanciado na garantia da via judiciária, previsto no artigo 20°, cujo nº.4, assegura
aos cidadãos procedimentos judiciais caraterizados pela celeridade e
prioridade, que como pudemos constatar é tudo o que menos foi tido em vista nas
inovações consagradas na Lei nº.34/2007, desde logo, pela exigência excessiva
dos seus criterios para um acesso aos meios de tutela e morosidade dos
procedimentos dos mesmos em nada adequada à obtenção de uma tutela efetiva e em
tempo útil.
Esta violação da lei fundamental é constante nas normas
contidas nos artigos 1° ao 7° da Lei, como analisados.
Estas questões de inconstitucionalidade material deveriam ser
sempre suscitadas nos respetivos processos impugnatórios, de forma a permitir
recursos de constitucionalidade, obrigando o Tribunal Constitucional a
pronunciar-se[3].
Bibliografia:
[1]Antunes,
Maria João, “A Constituição e justiça militar – Algumas notas a propósito do
novo Regulamento de Disciplina Militar”, Julgar nº 10 (2010)
[2]Almeida, Mário Aroso de, Manual de
processo Administrativo, Almedina, Coimbra, 2017.
- Andrade, José Carlos Vieira de, A Justiça
Administrativa: Lições, 12ª Edição, Almedina, 2017.
- Canotilho, José Joaquim/Moreira, Vital, Constituição
da República Portuguesa- Anotada
[3]Fonseca,
Guilherme da, “A disciplina militar, o contencioso administrativo e os direitos
fundamentais dos militares (breve reflexão sobre a Lei nº 34/2007, de 13 de
Agosto)”, Julgar nº 3 (2007).
Inês de Oliveira Pereira, 26743, Subturma 12
Comentários
Enviar um comentário