O surgimento de um Contencioso Administrativo Europeu e consequente europeização do Contencioso Administrativo nacional - relações e influências recíprocas
A União Europeia (UE) como a conhecemos hoje, configura-se como uma união de estados que, com fundamento nas respetivas constituições, decidem exercer em comum poderes de soberania. Atualmente é composta por 28 estados, entre os quais Portugal. Tudo começou, porém, num domínio económico, com a criação da Comunidade Europeia do Carvão e do Aço, nos anos 50 do século passado, avançando-se posterior e progressivamente para uma união também com um carácter político, que culmina com o Tratado de Maastricht, assinado em 1992, adquirindo com Tratado de Lisboa um carácter, por sua vez, político-institucional.
A UE é, consequentemente, uma união de direito. Nesta exposição em particular, cabe analisar como no bloco geral desse direito surge um Direito Administrativo europeu, ou comum, e como é que este influência o Direito Administrativo nacional. Mais precisamente, analisarei como surge um Contencioso Administrativo a nível Europeu e como é que o Contencioso Administrativo português tem sido europeizado.
Como não podia deixar de ser, na sua formação, houve uma nítida influência dos direitos dos estados membros que a compõem, ganhando depois autonomia e passando ela própria a ser influência direta e obrigatória destes. O Tribunal de Justiça (TJ - enquanto um dos tribunais do Tribunal de Justiça da União Europeia) tem um papel fulcral na criação e concretização do direito da UE, através da sua jurisprudência, uma vez que para se conhecer este Direito não chegam as disposições dos Tratados, precisando estas de ser complementadas pela interpretação que o TJ lhes dá. No âmbito que aqui cumpre tratar, foram os princípios gerais de Direito Administrativo dos estados membros o berço da criação e densificação de um Direito Administrativo a nível europeu pelo mesmo tribunal.
A partir do momento em que o direito da UE existe ele deve ser aplicado pelos estados que a compõem, porque foi pensado para tal e porque os estado o quiseram. Aliás, não é novidade nenhuma, pelo menos para qualquer jurista, que existe claramente um primado do direito da UE sobre o direito nacional (art. 8º CRP), que se tem verificado fortemente ao nível do Direito Administrativo, nomeadamente no Contencioso Administrativo.
Atualmente fala-se numa “Administração indireta”, o que se consubstancia no facto de serem as Administrações Públicas nacionais a aplicarem o direito da UE, pelo que as entidades administrativas dos estados membros são entidades administrativas comunitárias. No fundo, há uma dupla função de cada uma das administrações públicas que compõem a União. Consequentemente, isto implica uma reconfiguração da distribuição interna de poderes, a criação de novas estruturas organizativas e um complexificação do procedimento administrativo, porque existem diferentes formas de participação procedimental de cada uma das Administrações Públicas dos estados membros.
Um dos aspetos que me parece mais relevante neste âmbito é o da doutrina do “ato administrativo comunitário”, expressão que os tratados da UE nunca empregam e mesmo a jurisprudência comunitária, afirme-se mais uma vez, com o papel importantíssimo que desempenha, tem evitado ser explícita quanto ao aspeto.
Contudo, do art. do 288º do Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia (TFUE), relativo aos atos jurídicos da União, consta a “decisão”. Esta é um ato unilateral de direito derivado que se caracteriza por ser um ato individual e concreto, com destinatário definido e obrigatório em todos os elementos. É aqui que a doutrina maioritária, normalmente, faz a correspondência com o ato administrativo, concordando que a decisão é, por excelência, o ato administrativo comunitário.
O art. 263º do TFUE diz respeito ao recurso de anulação para os tribunais da UE e o Professor Fausto de Quadros questiona se podemos também concluir que são atos administrativos comunitários os regulamentos, as diretivas, as recomendações e os pareceres, contudo não pretendo concentrar-me nessas possibilidades.
O art. 291º do TFUE, não utiliza a expressão “ato administrativo”, no entanto, quando se refere às ”competência de execução” da Comissão, no âmbito do princípio da subsidiariedade, para indicar a competência desta para praticar atos, incluí aí, nomeadamente, os atos administrativos. “Nomeadamente” porque a execução de atos comunitários de conteúdo legislativo não tem de ser feita necessariamente por atos administrativos.
Quanto à jurisprudência do TJ, tem havido uma aceitação da existência de atos administrativos comunitários, ainda que não amplamente. O TJ veio a admitir a existência na ordem jurídica comunitária de “atos executivos individuais” que definiu como “atos de conteúdo concreto dirigidos a destinatários determinados” (caso “S.N.U.P.A.T.” e acórdão “Plaumann”), assim como, afirmou que “o poder de execução previsto no tratado inclui o poder de adotar atos executivo-normativos e também o poder de execução mediante atos individuais” (acórdão “Chemiefarma”).
O Regulamento nº 2913/92 do Conselho que aprova o Código Aduaneiro Comunitário e o Regulamento do Conselho, aprovado pela Decisão nº 937/2009 referem-se ambos a “atos administrativos”, nos seus arts. 4º e 8º/1, respetivamente.
A haverem atos administrativos, podem haver vícios a contaminá-los, porém os tratados não avançam muito a esse nível. Do art. 263º do TFUE, que enuncia os fundamentos do recurso, retiram-se os seguintes vícios: incompetência; vício de forma; violação de lei; e desvio de poder.
Fausto de Quadros entende que os tratados aceitaram a anulabilidade do ato, e aceitaram-na como a forma-regra da invalidade, uma vez que, por exemplo, os arts. 264º e 266º do TFUE utilizam a palavra “anulado”; o art. 263º, parágrafo 6 do TFUE prevê um prazo para o recurso de anulação; e do art. 264º, parágrafo 2 decorre que o ato produzirá efeitos até ser anulado. Contudo, os tratados não prevê nenhum regime de sanação do ato, assim como não dizem se admitem ou não a nulidade e a inexistência dos atos e, se sim, qual o respetivo regime. Não obstante, em 1957, o TJ rejeitou um recurso de anulação por falta de objeto, considerando que o ato recorrido era judicialmente inexistente, e, em 1969 o TJ voltou a declarar a inexistência jurídica de uma decisão da Comissão por ter sido tomada no âmbito das atribuições dos estados.
Quem não têm competência, de todo, para declarar inválido um ato jurídico da UE são os tribunais nacionais. Ao invés, se o juíz duvidar dessa validade ou se sobre ela tiver dúvidas, pode suscitar perante o TJ uma questão prejudicial, nos termos do art. 267º do TFUE, de apreciação da validade do ato de direito comunitário.
As decisões, enquanto atos administrativos comunitários, têm um enorme peso na esfera interna dos estados membros, pois como vimos, a transferência de grande partes das atribuições para a esfera da UE, significou uma transferência de poderes e nesse sentido uma sujeição interna, nomeadamente de cada Administração Pública e de cada tribunal nacional.
Na medida em que seja emitida uma decisão dirigida a pessoas da ordem interna de um estado membro, os termos de aplicabilidade na ordem interna são diretos, e por isso o tribunal e a Administração Pública nacionais devem aplicá-lo nos termos da teoria do primado do direito da UE. Já uma decisão dirigida a um estado membro implica uma transposição para o direito interno, tal como acontece com a diretiva, porém, enquanto tal não suceder, goza de efeito direto podendo ser invocada por qualquer interessado perante um tribunal nacional.
Por outro lado, a nível nacional, os atos administrativos comunitários consubstanciam parâmetros de referência para a interpretação de normas e atos nacionais. No âmbito do princípio da interpretação conforme, cabe ao tribunal nacional interpretar e aplicar em conformidade com o ato administrativo comunitário os atos internos, nomeadamente os atos que lhe dêem execução (caso “Colson"). Caso haja um desrespeito pelo juíz nacional pelos atos administrativos comunitários, incumprindo ou violando o direito da UE, tal pode gerar um processo de incumprimento contra o estado membro em causa (arts. 258º a 260º do TFUE) ou mesmo uma situação de responsabilidade civil extracontratual do estado (doutrina “Francovich” e casos “kobler” e “traghetti del mediterraneo"). O TJ admitiu já que a responsabilidade extracontratual dos estados pode ser gerada por atos não normativos, ou seja, pode ser gerado também por atos administrativos (caso “Hedley Lomas") ou por atos jurisdicionais (caso “Kobler”). Noutro plano, estaria também em causa uma violação da Constituição da República Portuguesa, uma vez que o seu art. 20º/1 confere um direito à tutela jurisdicional efetiva, o que acarreta, nomeadamente, a aplicação efetiva na ordem interna portuguesa, pelos respetivos tribunais, de todas as fontes do direito português, sem exceção das comunitárias.
Um problema que se coloca é o da existência de os atos nacionais praticados em violação do direito da UE. No sentido do que venho a expor no presente texto, é possível desde já perceber que tal terá consequências. Cabe precisar ainda mais a situação e analisar em que medida é que um ato administrativo praticado por autoridades nacionais pode ser atendido pelos tribunais administrativos portugueses quando viola o direito da UE.
Nessas circunstâncias, o ato administrativo interno desconforme fica sujeito ao contencioso de plena jurisdição da UE por via do processo por incumprimento dos arts. 263º a 265º do TFUE, não sendo passível de recurso de anulação pelo art. 263º TFUE, uma vez que os tribunais da UE não são juízes, em sede de contencioso da legalidade, da validade de normas ou atos nacionais. Por outro lado, esse ato fica também submetido ao contencioso administrativo nacional, no qual o direito da UE é fonte de direito interno e goza de primado. A verdade é que os estados membros têm o dever de aplicar o direito comunitário, mas também cai sobre eles a obrigação de eliminarem da respetiva ordem jurídica todos e quaisquer atos que contrariem o mesmo (caso “Simmenthal").
A doutrina costuma abordar a questão da revogação dos atos administrativos nacionais que concedem “ajudas de estado” violando o direito da concorrência da UE. Em causa, além do problema da violação do direito comunitário, está a colisão de dois blocos de princípios contraditórios: o bloco dos princípios da legalidade e da prossecução do interesse público e o bloco dos princípios da certeza e segurança jurídicas, da proteção da confiança e do respeito pelas legítimas expectativas criadas. A opção tomada pela jurisprudência comunitária, na falta de preceitos expressos sobre isto, tem sido a da defesa da revogação por parte dos estados desses atos, especialmente quando os beneficiários desses atos estejam de má fé. Porém, estando nós no âmbito de uma união de direito, não parece fazer sentido que se faça uma supressão total do segundo bloco de princípios, simplesmente para garantir a conformidade com o direito da UE. Colocada a questão nestes termos, não fará sentido existirem limitações a esta revogação, nomeadamente a nível de prazos? A verdade é que o TJ tem sido apologista de uma obrigação absoluta (sem prazo) de o estado recuperar a ajuda concedida, nomeadamente no caso Lucchini em que declarou que o estado tem o dever de recuperar a ajuda ilegal mesmo se já tiver formado sentença nacional em contrário e essa sentença já tiver transitado em julgado. Parece existir aqui uma concepção algo objetivista do Contencioso Administrativo, preterindo-se a tutela jurídica dos interesses dos particulares para se dar primazia à fiscalização da legalidade.
Penso que é imperativo que o direito comunitário fixe o prazo, mas um prazo comum a todos os estados membros. O Professor Fausto de Quadro sugere, no entanto, que enquanto não houver esse prazo, pelo menos em Portugal, o razoável seria tomar-se em consideração o prazo de 20 anos fixado pelo direito civil, nos arts. 309º e 1296º do CC).
Uma outra questão que me parece relevante para melhor percebermos a dinâmica aqui presente é a que está subjacente ao caso “Kuhne”, que se prende com a conformação de caso administrativo decidido com direito posterior. Em suma, o que aconteceu nesse caso foi que um ato administrativo definitivo foi confirmado num recurso contencioso de anulação dele interposto, tendo a sentença transitado em julgado. Posteriormente, num outro processo em que estava em causa a mesma questão, o mesmo tribunal nacional, diferentemente do caso anterior, achou necessário recorrer ao TJ colocando-lhe uma questão prejudicial, na qual esse tribunal discordou da interpretação que fora dada por aquele tribunal nacional no processo anterior. Ora, a sociedade “Kuhne", que ficara então prejudicada, recorreu à Administração para que esta reapreciasse a questão e lhe aplicasse a mesma interpretação jurídica que o TJ deu à norma comunitária no segundo processo, porém não foi bem sucedida, uma vez que a Administração veio invocar que os acórdãos do TJ apenas produzem efeitos para o futuro. O passo seguinte, foi então o de recorrer ao tribunal administrativo competente, que, por sua vez, suscitou uma questão prejudicial ao TJ no sentido de saber se o órgão administrativo ficava vinculado a reconsiderar uma decisão passada e definitiva para garantir a conformidade com o direito comunitário. O TJ começou por entender que, tendo em conta, nomeadamente, o princípio da segurança jurídica, uma decisão administrativa definitiva não tem de ser revogada. Apesar disto, o direito nacional em causa consagrava que os órgãos administrativos tinham em si o poder de revogar uma decisão administrativa definitiva sempre que entenderem, pelo que, tendo em conta as especificidades desse direito, o TJ decidiu que o órgão administrativo estaria obrigado, por força do princípio da lealdade comunitária ou da cooperação leal (10º CE), ao reexame de um ato administrativo definitivo anterior para o conformar com a interpretação posterior do TJ, desde que: 1) o ato se tenha tornado definitivo estando esgotados os recursos ordinários internos; 2) a sentença em causa, anterior à jurisprudência do TJ que lhe interessa, se fundamente numa interpretação errada do direito comunitário, aplicada sem que tenha havido questão prejudicial ao TJ; 3) o interessado se tenha dirigido ao órgão administrativo competente logo depois de tomar conhecimento da referida jurisprudência do TJ.
Como já foi possível ver, a relação que se estabelece entre a esfera nacional e a esfera comunitária do direito e do contencioso administrativo é muito estreita, intensa e constante. A influência de uma sobre a outra é notável.
No fundo, soberania nacional dos estados membros da UE perdeu a sua configuração tradicional de exclusividade passando a assumir uma conotação de soberania condividida - uma soberania partilhada com a UE. O Direito Administrativo foi um dos ramos que mais sofreu este impacto, uma vez que nasceu ligado à ideia de “Estado”, mas dele se foi afastando, com as Administrações dos estados membros a assumirem um carácter europeu, surgindo mesmo uma “função administrativa europeia”. Ao mesmo tempo, tem sido precisamente através da via administrativa que se tem conseguido garantir eficazmente a efetividade do direito comunitário na ordem interna dos estados. A própria europeização do Contencioso Administrativo tende a dar maior efetividade ao direito comunitário a nível nacional no âmbito do tratamento dos administrados, e tem tido um papel muito importante no quadro das garantias contenciosas dos particulares.
Tudo isto se releva muito interessante, especialmente pela sua harmoniosa complexidade, uma vez que este fenómeno de europeização do Direito Administrativo não leva, contudo, ao desaparecimento das especificidades das ordens jurídicas internas, pois que está consagrado um princípio basilar de subsidariedade. Os estados membros ficam com a responsabilidade e direito de criarem um direito administrativo nacional capaz de dar plena eficácia ao direito comunitário na respetiva ordem interna e só na medida em que não forem capazes de tal é que o direito comunitário se substituirá aos direitos administrativos nacionais.
O Professor Vasco Pereira da Silva fala num “direito europeu concretizado” onde se verifica uma dependência administrativa de Direito Europeu e uma dependência europeia do Direito Administrativo. Basicamente o Direito Europeu só se realização através do Direito Administrativo e o Direito Administrativo é cada vez mais um direito europeu. No fundo, aquilo a que se tem vindo a assistir é a uma criação de um Direito Administrativo a nível europeu, mas também a da convergência dos Direito Administrativo dos estados membros da União.
Por fim, concluo com uma pequena nota interessante que o Professor Fausto de Quadros faz ao advertir que estamos algo “atrasados na história”, sendo que a realidade atual começa a ser a do nascimento de um Direito Administrativo já a nível global. Eu penso que é ousado estruturar qualquer coisa parecida um Direito Administrativo Global, mas a verdade é que já existem problemas administrativos a essa escala.
Bibliografia
- Quadros, Fausto de, A Relevância para o Contencioso Administrativo nacional do ato administrativo comunitário e do ato administrativo nacional contrário ao direito da União Europeia, In: Em homenagem ao Professor Doutor Diogo Freitas do Amaral, 2010
- Quadros, Fausto de, A europeização do contencioso administrativo, In: Estudos em homenagem ao Professor Doutor Marcello Caetano: no centenário do seu nascimento, Vol. 1, 2006
- Silva, Vasco Pereira da, O contencioso administrativo no divã da psicanálise: ensaio sobre as acções no novo processo administrativo, 2009, 2ª edição atualizada, Almedina
Ana Vaz, nº 26250
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