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Haverá um alargamento do objeto do processo nas ações de impugnação? - análise do artigo 95º/1 e 3 do CPTA

Antes de indagar pelas interpretações do artigo 95º/3 na atual doutrina do Contencioso Administrativo (veja-se, em especial, as posições dos Professores Mário Aroso de Almeida e Vasco Pereira da Silva), cabe fazer uma breve introdução sobre a causa de pedir no âmbito do objeto do processo. Isto porque, como salienta o Professor Vasco Pereira da Silva, devemos ter em conta a causa de pedir “na sua ligação com os direitos dos particulares”[1], numa perspetiva subjetivista do Contencioso Administrativo. Deste modo, o Contencioso Administrativo é tido como “um processo de partes” em que se deve ter conta para efeitos de objeto do processo, o ato administrativo enquanto lesivo de direitos dos particulares e não o ato administrativo na sua globalidade. Podemos dizer que esta é uma conceção subjetivista que tem como primeiro objetivo a defesa dos direitos dos particulares, dos seus direitos subjetivos.

Tendo em conta esta introdução, cabe então, passar à análise do artigo 95º do CPTA, em particular, os seus números 1 e 3. 
O artigo 95º/1 estabelece que “A sentença deve decidir todas as questões que as partes tenham submetido à sua apreciação e não pode ocupar-se senão das questões suscitadas, salvo quando a lei lhe permita ou imponha o conhecimento oficioso de outras”. Segundo o Professor Vasco Pereira da Silva e segundo um entendimento pacífico na doutrina em geral, encontra-se consagrado neste número um, o princípio do contraditório, princípio esse comum a qualquer processo, seja ele civil ou administrativo, em que o juiz não pode “fugir” àquilo que as partes invocarem no processo, ainda que, o juiz tenha algum poder inquisitório “quando a lei lhe permita ou imponha conhecimento oficioso de outras” questões. Este último ponto, como veremos em seguida, suscita alguma discórdia na doutrina administrativista, em especial, em conjugação com o art. 95º/3.

É este, justamente, o problema central que irei abordar prontamente. O art. 95º/3 estabelece, na sua primeira parte que “Nos processos impugnatórios, o tribunal deve pronunciar-se sobre todas as causas de invalidade que tenham sido invocadas contra o ato impugnado, exceto quando não possa dispor dos elementos indispensáveis para o efeito (...)”. Mais uma vez, como refere o Professor[2], o objetivo desta primeira parte da norma será a apreciação pelo julgador de todos os direitos alegados pelas partes no processo de modo a que o juiz não conheça apenas parte das ilegalidades suscitadas com o argumento que tal será mais que suficiente para declarar o ato inválido. Se a regra da primeira parte do número três do artigo 95º não reiterasse esta posição, estaria em causa a proteção dos direitos subjetivos do particular, uma vez que a Administração poderia invocar a renovação do ato com fundamento no facto de a ilegalidade antes invocada pelo particular não ter merecido qualquer pronúncia por parte do tribunal.[3]
Quanto à segunda parte do número três do artigo 95º, entramos num campo de discórdia na doutrina, mais concretamente, entre os Professores Vasco Pereira da Silva e Mário Aroso de Almeida, pois surge a questão de saber se encontramos aqui uma ampliação do âmbito do princípio do inquisitório do juiz, ou seja, perceber se o juiz ainda se encontra limitado pelos factos trazidos pelas partes, ou, se, pelo contrário, poderá ir para além deles, acabando por portar-se como uma parte no processo.
Começarei por analisar, sucintamente a posição do Professor Mário Aroso de Almeida.[4]
O Professor começa por definir o objeto do processo impugnatório como a pretensão impugnatória que o autor deduz no processo, não deixando, no entanto, o ato impugnado de ser importante no âmbito do objeto, uma vez que surge como “objeto de ataque”, ou seja, “como objeto de anulação ou declaração de nulidade”. Porém, o autor não vê razão para associar a cada causa de invalidade do ato impugnado uma determinada pretensão anulatória, fundada numa específica causa de pedir, mas antes deve-se olhar para a pretensão anulatória em termos unitários, no conjunto de todas as possíveis causas de invalidade de que possa padecer o ato. O que vem a defender é que “a partir do momento em que alguém é afetado na sua esfera jurídica pelos efeitos que decorrem do conteúdo de um ato inválido, fica, na verdade, automaticamente legitimado a fazer valer contra esse ato todo e qualquer possível vício de que ele possa enfermar”, acabando por concluir que “o que se discute é o bem fundado da pretensão que a Administração faz valer com o ato impugnado e, portanto, o resultado de um processo que só é julgado procedente se e na medida em que for negado o poder da Administração enquanto autora do ato atacado. Por este motivo (...) há uma inversão das posições processuais das partes por comparação com as posições que lhes correspondem no quadro da relação jurídica substantiva.” Desde que se aceite esta visão unitária da pretensão anulatória, sem que tal envolva uma ampliação do objeto do processo, “é de reconhecer que a identificação pelo tribunal de causas de invalidade não invocadas, não o afasta do objeto do processo com o consequente alargamento dos poderes inquisitórios que o art. 9º/3 confere ao juiz”.


Já o Professor Vasco Pereira da Silva entende que o que a segunda parte do número 3 do artigo 95º consagra é o poder do inquisitório que se traduz na faculdade do juiz em identificar causas de invalidade diferentes das alegadas, mas sempre dentro do âmbito dos factos trazidos para o processo pelas partes. Não se trata de introduzir factos novos, mas antes de individualizar ilegalidades distintas das alegadas e que resultem somente dos factos trazidos para o processo. Isto resulta do facto de os tribunais terem a tarefa de conhecer do direito, logo, não devem ficar “presos” às qualificações feitas pelas partes, mas antes ficam limitados à apreciação do ato através do direito subjetivo invocado pela parte. O professor defende também que há, de facto, um alargamento do objeto do processo na medida em que, após a reforma, deixa de haver o mecanismo dos vícios do ato administrativo deixando que o juiz aprecie diretamente os “direitos invocados pelos particulares e os factos causadores da respetiva lesão” (antes o juiz apenas tinha acesso às ilegalidades do ato que era invocadas, não obstante poder requalificá-las). Neste sentido, o Professor concorda com Mário Aroso de Almeida quando este refere que “Está em causa a identificação, no episódio da vida que foi trazida a juízo, de ilegalidades diversas daquelas que foram identificadas pelo autor” o que permite “o alargamento dos limites objetivos do caso julgado (...)”.
O que o Professor critica é a confusão que é feita entre esta posição e a conceção objetivista do objeto do processo (a causa de pedir é a ilegalidade do ato e nada tem a ver com os direitos subjetivos dos particulares- posição defendida por Vieira de Andrade[5]), uma vez que isso levaria a que o juiz fosse considerado uma parte no processo com poderes para configurar a causa de pedir através da introdução de novos factos, o que seria, desde já inconstitucional (art. 212º/3 e 268º/4 CRP). Quase que trataríamos o juiz da mesma forma que o Ministério Público, que é uma parte no processo.
Deste modo, há uma série de argumentos que são invocados pelo autor para criticar a posição de Mário Aroso de Almeida, nomeadamente, o facto de, em primeiro lugar, partir do direito processual para o direito substantivo leva a que as posições subjetivas dos particulares sejam vistas na ótica dos direitos reativos (o particular pode reagir se foi violado o seu direito na relação jurídico-administrativa), mas o direito de reagir é um instrumento para proteger os direitos subjetivos dos quais os particulares são titulares no âmbito das relações jurídicas. Não se pode confundir a relação jurídica substantiva com a processual.
Por outro lado, a conceção do direito à anulação acaba por confundir a titularidade do direito com a sua lesão, uma vez que se considera que o direito apenas surge quando há um facto lesivo, sendo a sentença de anulação que cria o direito subjetivo. Tal não será concebível porque a sentença apenas reconhece o poder jurídico de vantagem do particular, que resulta da relação jurídica com a Administração, ou seja, esse direito já existe antes da sentença do tribunal.

Em suma, o Professor entende que é na medida dos direitos subjetivos dos particulares que o objeto do processo é delimitado, logo, o art. 95º/3 não é nenhuma exceção à regra geral do nº1, mas será, antes uma concretização dessa regra para os processos impugnatórios. É o que decorre, aliás da reforma do Contencioso em que este deixa de ser visto numa perspetiva objetivista para passar a ser visto numa perspetiva subjetivista.
É ainda invocado, como “argumento final” desta conceção o facto de o legislador na parte final do art. 95º/3 prever que, na possibilidade de o tribunal identificar causas de invalidade distintas das alegadas, as partes terem que ser ouvidas, num prazo de 10 dias, num respeito pelo princípio do contraditório.

Conclusão

Quanto à minha opinião, e, tendo em conta o que foi supra explicitado, creio que não se pode aceitar esta visão unitária da pretensão anulatória. De facto, adotar uma conceção objetivista do objeto do processo em que este se liga, irremediavelmente, aos vícios do ato administrativo, será ignorar, por completo, os direitos subjetivos dos particulares que existem desde o momento em que se constitui a relação jurídico-administrativa e não apenas desde o momento em que haja uma lesão desse direito e tal seja reconhecido pelo tribunal. É importante ter isto em conta, uma vez que é o que vai ditar a não interferência do juiz como “parte” no processo. Estamos no âmbito de um “processo de partes” e não num “processo-ato”, logo, o juiz não pode carrear para o processo factos novos, no que se entende que estaríamos perante um alargamento do princípio do inquisitório e consequente supressão do princípio do contraditório, o que é inconcebível. O juiz não pode sair do âmbito da causa de pedir que é formulada pelas partes, podendo apenas requalificar os factos por elas qualificadas.
O juiz deve ser independente, neutro e passivo, o que impede que aja como parte no processo e devemos sempre ter presente que “(...) o objeto do processo é constituído pelos direitos subjetivos alegados pelos particulares numa concreta relação jurídica administrativa”[6].



Nicole Silva, nº26213, subturma 12

Bibliografia

ALMEIDA, Aroso de, Manual de Processo Administrativo, 2ª edição, Almedina, 2016
ALMEIDA, Aroso de, O Novo Regime do Processo nos Tribunais Administrativos, 4ª edição, Almedina, Coimbra, 2005
ANDRADE, Vieira de, A Justiça Administrativa (Lições), 7ª edição, Almedina, Coimbra, 2005
SILVA, Vasco Pereira da, O Contencioso Administrativo no Divã da Psicanálise, 2ª edição, Almedina, 2009
SILVA, Vasco Pereira da, Para um Contencioso Administrativo dos Particulares – Esboço de uma Teoria Subjetivista do Recurso Direto de Anulação, Almedina, Coimbra, 1989



[1] Vasco Pereira da Silva, Para um Contencioso Administrativo dos Particulares, p.189 e O Contencioso Administrativo no Divã da Psicanálise, p.294
[2] Vasco Pereira da Silva, O Contencioso Administrativo no Divã (...), p. 296
[3] Neste sentido, Mário Aroso de Almeida, O Novo Regime do Processo nos Tribunais Administrativos, 4ª edição, p. 189
[4] Mário Aroso de Almeida, Manual de Processo Administrativo, 2ª edição, p. 78 e seguintes
[5] Vieira de Andrade, A Justiça Administrativa (Lições), 7ª edição, pp. 210 e 211
[6] Vasco Pereira da Silva, O Contencioso Administrativo no Divã (...), p. 311

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