Avançar para o conteúdo principal

Análise ao Acórdão do Tribunal dos Conflitos (STA) de 19/10/2017, Proc. Nº 02/17

Neste acórdão do Tribunal dos Conflitos[1], está em causa um conflito negativo de jurisdição entre a Comarca de Braga (Vila Nova de Famalicão, secção cível) e o Tribunal Administrativo e Fiscal de Braga.
A intentou contra a Associação Humanitária dos Bombeiros Voluntários, B, C (Companhia de Seguros) e D (Companhia de Seguros) uma ação declarativa de condenação para efetivar a responsabilidade civil extracontratual, pedindo a condenação destes a, solidariamente, pagarem-lhe uma indemnização por danos patrimoniais e não patrimoniais (€50.000.00), acrescida de juros de mora vincendos incidentes sobre essa quantia e contados desde a citação até ao pagamento integral.
Como fundamento da sua pretensão, A alegou “ser sobrinha e a única herdeira de E que, em 20/12/2012, fora vítima de um acidente quando era transportada numa ambulância”, propriedade da Associação Humanitária de Bombeiros Voluntários e conduzida por B, aos tratamentos que fazia habitualmente, “em virtude de ter sofrido uma queda no interior dessa ambulância por não lhe ter sido colocado o cinto de segurança” e B ter travado bruscamente, por razões desconhecidas.
Na decisão transitada em julgado (20/11/2015), a Instância Local Cível de Vila Nova de Famalicão, considerando que a Associação Humanitária dos Bombeiros Voluntários, pessoa coletiva de utilidade pública administrativa, no âmbito do transporte de doentes “exercia uma atividade que se concretizava num quadro de índole pública, colaborando com a Administração numa tarefa de gestão pública”, julgou-se materialmente incompetente, uma vez que entendia que a competência para apreciar esta ação cabia aos tribunais administrativos.
O processo foi remetido ao Tribunal Administrativo e Fiscal de Braga, que se declarou igualmente incompetente em razão da matéria, por entender que os tribunais competentes para a decisão do litígio eram os tribunais comuns. Isto porque o transporte de doentes não configura, em si mesmo, prerrogativas de poder público e não era enformada por princípios de direito público.
A decisão acima transitou em julgado e chegou ao Tribunal dos Conflitos para que este resolvesse o conflito negativo de jurisdição entre a Instância Local Cível de Vila Nova de Famalicão e o Tribunal Administrativo e Fiscal de Braga.
Num parecer da Procuradora-Geral Adjunta, esta concluiu que as atividades desenvolvidas pelas Associações de Bombeiros e pelos seus colaboradores «”traduzem a prática de funções de caráter público que estão sujeitas a princípios de direito administrativo”». Deste modo, a competência deveria ser atribuída aos tribunais administrativos (art. 4º/1, i), ETAF – atual alínea h)).
Sendo a competência em razão da matéria apreciada em função dos termos em que a ação é proposta e determinada pela forma como o Autor (A) estrutura o pedido e os seus fundamentos, é através destes elementos que se afere o enquadramento da apreciação da ação na jurisdição comum ou na jurisdição administrativa e fiscal[2].
De acordo com o art. 4º/1, i) do ETAF (atual alínea h)), a «“responsabilidade civil extracontratual dos sujeitos privados aos quais seja aplicável o regime específico da responsabilidade do Estado e demais pessoas coletivas de direito público”»[3] inclui-se no âmbito da jurisdição administrativa. Segundo o art. 5º/1 do Regime da Responsabilidade Civil Extracontratual do Estado e Demais Entidades Públicas, as disposições que regulam a responsabilidade das pessoas coletivas de direito público por danos decorrentes do exercício da função administrativa também se aplicam à responsabilidade civil de pessoas coletivas de direito privado, por ações ou omissões que adotem no exercício de prerrogativas de direito público ou que sejam reguladas por disposições ou princípios de direito administrativo.
Assim sendo, a submissão de entidades privadas ao regime da responsabilidade civil da Administração (e ao contencioso administrativo) tem de ser definida em função da natureza jurídica dos poderes que elas tenham exercido numa situação concreta. Este regime aplica-se apenas quando haja intervenção de poderes de autoridade ou de normas de direito administrativo, pelo que os atos de gestão privada ficam excluídos.
As associações humanitárias de bombeiros, pessoas de utilidade pública administrativa, têm como principal finalidade a proteção de pessoas e bens e a extinção de incêndios, mantendo um corpo de bombeiros voluntários ou misto em funções[4]. Respondem civilmente pelos atos ou omissões dos seus representantes, agentes ou mandatários (art. 9º, Lei nº 32/2007, de 13/08, em remissão para o art. 500º do Código Civil, que define o regime da responsabilidade do comitente, aplicável ao Estado e às pessoas coletivas públicas por danos causados no exercício de atividade de gestão privada).
Subsidiariamente, é aplicável às associações humanitárias de bombeiros o regime geral das associações. Pelo contrário, as disposições do Código Administrativo relativas às pessoas coletivas de utilidade pública administrativa não lhes são aplicáveis (art. 50º, Lei 32/2007).
Posto isto, as associações humanitárias de bombeiros regem-se, em regra, pelo direito privado, e só estão vinculadas ao direito administrativo por determinação expressa da lei. Além disso, respondem pelos prejuízos causados a terceiros no exercício da sua atividade segundo um regime de direito privado. Só quando o ato danoso é praticado no exercício de poderes de autoridade ou segundo um regime de direito administrativo, é que as associações humanitárias de bombeiros respondem perante os tribunais administrativos.
Neste caso concreto, no qual é pedida uma indemnização pelo dano sofrido por E, o facto lesivo consistiu na travagem conjugada com o incumprimento dos deveres de utilização dos dispositivos de segurança de passageiros.
Considerando o pedido e a causa de pedir, o Tribunal dos Conflitos concluiu estar em causa a responsabilidade civil emergente de um acidente de viação. Embora o facto lesivo tenha ocorrido no âmbito da atividade de transporte de doentes, B, ao conduzir a viatura na via pública, “fá-lo de forma idêntica aos outros utentes da estrada e com submissão às mesmas normas de direito privado, não agindo no exercício de poderes públicos que lhe sejam atribuídos em função da sua condição de condutor da ambulância”, propriedade da Associação Humanitária de Bombeiros. A “imperícia e a falta de cuidado que são imputadas ao condutor do veículo não resultou do desrespeito de vinculações jurídico-públicas impostas à Associação Humanitária, enquanto titular de funções públicas”. Deste modo, aplicar-se-á o regime privado e os tribunais competentes são os tribunais comuns, isto é, judiciais (art. 500º, CC).
Foi esta decisão do Tribunal dos Conflitos tomada corretamente?
Nos conflitos de jurisdição o que está em causa são conflitos que envolvem tribunais de espécies diferentes. Os tribunais administrativos e fiscais têm competência para julgar as ações e recursos contenciosos que tenham “por objeto dirimir os litígios emergentes das relações jurídicas administrativas e fiscais” (art. 212º/3, CRP). Atendendo às atuais disposições do ETAF, mais concretamente ao art. 4º/1, h), a apreciação de litígios que tenham por objeto questões relativas à “responsabilidade civil extracontratual dos demais sujeitos aos quais seja aplicável o regime específico da responsabilidade do Estado e demais pessoas coletivas de direito público” compete aos tribunais administrativos e fiscais.
As associações humanitárias de bombeiros voluntários são entidades privadas que prosseguem fins de interesse público (proteção de pessoas e bens e a extinção de incêndios). Deste modo, será ponto assente que os tribunais administrativos podem ser competentes quando a litígios que surjam em relação a estas entidades.
Segundo o próprio regime jurídico das associações humanitárias de bombeiros (Lei nº 32/2007), estas adquirem personalidade jurídica e são reconhecidas como pessoas coletivas de utilidade pública administrativa com a sua constituição (art. 3º). Posto isto, e sendo que, como foi referido anteriormente, o Código Administrativo, nas disposições relativas às pessoas coletivas de utilidade pública, não é aplicável a estas associações (art. 50º/2, Lei 32/2007).
Nestes termos, o Professor Vasco Pereira da Silva[5] considera que o ex-artigo 4º/1, i) do ETAF deve ser interpretado tendo em conta que “a análise de cada uma das situações identificadas como pertencentes ao Contencioso Administrativo não é taxativa, mas apenas indicativa dos elementos a ponderar para a determinação do âmbito da jurisdição administrativa” e que da análise conjugada das alíneas deste mesmo artigo referentes à responsabilidade civil pública irá resultar uma «inequívoca consagração de um regime de unidade jurisdicional, tanto no que respeita ao contencioso da responsabilidade civil extracontratual da Administração Pública, em virtude do abandono da “falsa distinção” entre gestão pública e gestão privada como critério da determinação da competência do tribunal (como antes ocorria), como também, mais amplamente, no que se refere ao contencioso de toda a responsabilidade civil pública, que agora passa a ser da competência dos tribunais administrativos». Assim sendo, o Professor defende a unificação deste regime jurídico, sendo idênticas as opiniões de Mário Aroso de Almeida e de Diogo Freitas do Amaral[6]. Estes últimos autores consideram que «”na ausência de disposições de direito substantivo que prevejam a aplicação do regime específico da responsabilidade do Estado e demais pessoas coletivas de direito público a entidades privadas, parece que a previsão do artigo 4º, n.º 1, do ETAF, permanecerá sem alcance prático”», sendo que o Professor Vasco Pereira da Silva não os acompanha neste entendimento, tendo em conta o critério geral do art. 1º/1 do ETAF e as normas que o concretizam, nomeadamente o art. 4º/1, i) (na antiga redação).
O escopo principal das associações humanitárias de bombeiros é claramente de interesse público, consistindo sobretudo na proteção dos cidadãos, nomeadamente no acesso à saúde através do transporte adequado dos doentes a consultas. Estas associações respondem pelos prejuízos causados a terceiros no exercício da sua atividade segundo um regime de direito privado. Porém, quando o ato danoso é praticado no exercício de poderes de autoridade ou segundo um regime de direito administrativo, as associações humanitárias de bombeiros respondem perante os tribunais administrativos.
O condutor da ambulância (B) atuava sob o poder de autoridade da Associação Humanitária de Bombeiros Voluntários, no exercício das suas funções, no momento em que foi provocado o ato lesivo para E, logo são aqui chamados os tribunais administrativos.
Este caso pode, como aconteceu, causar um conflito de jurisdições que se pode tornar difícil de ultrapassar. Ainda assim, dada a argumentação necessária à apreciação deste caso, concluo pela não adequação da decisão tomada pelo Tribunal dos Conflitos, sendo que, nos termos do art. 4º/1, h) e do art. 1º/5 do RRCEE[7], os tribunais competentes para decidir este litígio são os tribunais administrativos (TAF de Braga, mais concretamente) e não os judiciais.

Bibliografia:
PEREIRA DA SILVA, Vasco, O Contencioso Administrativo no Divã da Psicanálise – Ensaio sobre as ações no novo processo administrativo, 2ª edição, Almedina, 2009
AROSO DE ALMEIDA, Mário/ FREITAS DO AMARAL, Diogo, Grandes Linhas da Reforma Do Contencioso Administrativo, 3ª Edição, Almedina, Coimbra







Madalena Silva, nº 26272




[1] Tribunal inominado, de tipo arbitral, que se destina ao julgamento dos conflitos de jurisdição e competência entre autoridades administrativas e judiciais. É composto pelos juízes da Secção do Contencioso Administrativo do STA e por três juízes do STJ, sorteados para cada processo.
[2] Ac. do Tribunal dos Conflitos de 27/10/2004 – Conflito nº 02/04.
[3] Redação do ETAF antes da atualização de 2015.
[4] Art. 2º/1 e 3 da Lei nº 32/2007, de 13/08.
[5] V. Pereira da Silva, “O Contencioso Administrativo no Divã da Psicanálise”, p. 524 e 525, 536-538.
[6] M. Aroso de Almeida e D. Freitas do Amaral, “Grandes Linhas da R. do C. A”, p. 36.
[7] “As disposições que, na presente lei, regulam a responsabilidade das pessoas coletivas de direito público, bem como dos titulares dos seus órgãos, funcionários e agentes, por danos decorrentes do exercício da função administrativa, são também aplicáveis à responsabilidade civil de pessoas coletivas de direito privado e respetivos trabalhadores, titulares de órgãos sociais, representantes legais ou auxiliares, por ações ou omissões que adotem no exercício de prerrogativas de poder público ou que sejam reguladas por disposições ou princípios de direito administrativo.”

Comentários

Mensagens populares deste blogue

A intimação para prestação de informações, consulta de documentos e passagem de certidões

I.                     Introdução: Até à reforma de 2015, os pedidos que podiam ser apresentados perante a jurisdição administrativa podiam sê-lo por meio de processo comum ou por meio de formas de processo especiais. Assim, havia uma dualidade [1] entre a ação administrativa comum – todos os litígios no âmbito da jurisdição administrativa que não eram objeto de regulação especial – e a ação administrativa especial – sendo esta de três tipos: impugnação de atos; condenação à prática de ato legalmente devido; impugnação e declaração de ilegalidade da omissão das normas. No entanto, com a reforma de 2015, esta dualidade veio a desaparecer, passando todos os processos não-urgentes a tramitar sob a forma de ação administrativa, única e exclusiva forma de processo (note-se, “não urgente”). Porém, isto não quis dizer que existisse apenas esta ação administrativa uma vez que também era possível...

O segundo “trauma” do Direito Administrativo: o Acórdão Blanco

O Direito Administrativo passou por dois “acontecimentos traumáticos” aquando do seu surgimento, o que permite explicar alguns dos problemas com que se defronta atualmente. O seu primeiro “trauma” resulta do nascimento do Contencioso Administrativo, na Revolução Francesa. Concebido como “privilégio de foro” da Administração, não se destinava a garantir a proteção dos direitos dos particulares, mas a assegurar a garantia da Administração e da defesa dos poderes públicos. Deste modo, cabia à própria Administração julgar-se a si mesma, com base num princípio da separação de poderes que levou à criação de um “juiz doméstico” ou “de trazer por casa”, dado que os tribunais judiciais estavam proibidos de interferir na esfera da Administração ( troubler, de quelque manière que ce soit, les opérations des corps administratifs ). Instaurou-se, assim, um sistema no qual imperava uma “confusão entre a função de administrar e a de julgar”. É precisamente deste Contencioso Administrativo, d...

A prevalência da substância sobre a forma

A prevalê ncia da substância sobre a forma (Princípio pro  actione ) ​ O  contencioso administrativo é pautado por uma igualdade de partes, cuja ideia se encontra concretizada no artigo 6º do Código de Processo   nos   Tribunais   Administrativos (CPTA).   Este princípio deve-se a razões históricas,   pois   não só o Estado decidiu submeter-se ao direito, como também e sobretudo,   porque a jurisdição administrativa passou de um objetivo de proteger a Administração face ao controlo dos tribunais,   para o objetivo de garantir os direitos fundamentais dos particulares.   Deste modo, o contencioso administrativo plenamente  jurisdicionalizado ,   isto é, independente da Administração Pública, possibilitou   que   os   administrados desencadeassem processos administrativos com o intuito de alegar,   perante os tribunais administrativos, a ofensa de um direito ou interesse legalmente protegidos, ...