Neste acórdão do Tribunal dos Conflitos[1],
está em causa um conflito negativo de jurisdição entre a Comarca de Braga (Vila
Nova de Famalicão, secção cível) e o Tribunal Administrativo e Fiscal de Braga.
A intentou contra a Associação Humanitária
dos Bombeiros Voluntários, B, C (Companhia de Seguros) e D (Companhia de
Seguros) uma ação declarativa de condenação para efetivar a responsabilidade civil
extracontratual, pedindo a condenação destes a, solidariamente, pagarem-lhe uma
indemnização por danos patrimoniais e não patrimoniais (€50.000.00), acrescida
de juros de mora vincendos incidentes sobre essa quantia e contados desde a
citação até ao pagamento integral.
Como fundamento da sua pretensão, A alegou
“ser sobrinha e a única herdeira de E que, em 20/12/2012, fora vítima de um
acidente quando era transportada numa ambulância”, propriedade da Associação
Humanitária de Bombeiros Voluntários e conduzida por B, aos tratamentos que
fazia habitualmente, “em virtude de ter sofrido uma queda no interior dessa
ambulância por não lhe ter sido colocado o cinto de segurança” e B ter travado
bruscamente, por razões desconhecidas.
Na decisão transitada em julgado
(20/11/2015), a Instância Local Cível de Vila Nova de Famalicão, considerando
que a Associação Humanitária dos Bombeiros Voluntários, pessoa coletiva de
utilidade pública administrativa, no âmbito do transporte de doentes “exercia
uma atividade que se concretizava num quadro de índole pública, colaborando com
a Administração numa tarefa de gestão pública”, julgou-se materialmente
incompetente, uma vez que entendia que a competência para apreciar esta ação
cabia aos tribunais administrativos.
O processo foi remetido ao Tribunal
Administrativo e Fiscal de Braga, que se declarou igualmente incompetente em
razão da matéria, por entender que os tribunais competentes para a decisão do
litígio eram os tribunais comuns. Isto porque o transporte de doentes não
configura, em si mesmo, prerrogativas de poder público e não era enformada por
princípios de direito público.
A decisão acima transitou em julgado e
chegou ao Tribunal dos Conflitos para que este resolvesse o conflito negativo
de jurisdição entre a Instância Local Cível de Vila Nova de Famalicão e o
Tribunal Administrativo e Fiscal de Braga.
Num parecer da Procuradora-Geral Adjunta,
esta concluiu que as atividades desenvolvidas pelas Associações de Bombeiros e
pelos seus colaboradores «”traduzem a prática de funções de caráter público que
estão sujeitas a princípios de direito administrativo”». Deste modo, a
competência deveria ser atribuída aos tribunais administrativos (art. 4º/1, i),
ETAF – atual alínea h)).
Sendo a competência em razão da matéria
apreciada em função dos termos em que a ação é proposta e determinada pela
forma como o Autor (A) estrutura o pedido e os seus fundamentos, é através
destes elementos que se afere o enquadramento da apreciação da ação na
jurisdição comum ou na jurisdição administrativa e fiscal[2].
De acordo com o art. 4º/1, i) do ETAF
(atual alínea h)), a «“responsabilidade civil extracontratual dos sujeitos
privados aos quais seja aplicável o regime específico da responsabilidade do
Estado e demais pessoas coletivas de direito público”»[3]
inclui-se no âmbito da jurisdição administrativa. Segundo o art. 5º/1 do Regime
da Responsabilidade Civil Extracontratual do Estado e Demais Entidades
Públicas, as disposições que regulam a responsabilidade das pessoas coletivas
de direito público por danos decorrentes do exercício da função administrativa
também se aplicam à responsabilidade civil de pessoas coletivas de direito
privado, por ações ou omissões que adotem no exercício de prerrogativas de
direito público ou que sejam reguladas por disposições ou princípios de direito
administrativo.
Assim sendo, a submissão de entidades
privadas ao regime da responsabilidade civil da Administração (e ao contencioso
administrativo) tem de ser definida em função da natureza jurídica dos poderes
que elas tenham exercido numa situação concreta. Este regime aplica-se apenas
quando haja intervenção de poderes de autoridade ou de normas de direito
administrativo, pelo que os atos de gestão privada ficam excluídos.
As associações humanitárias de bombeiros,
pessoas de utilidade pública administrativa, têm como principal finalidade a proteção de pessoas e bens e a extinção de incêndios,
mantendo um corpo de bombeiros voluntários ou misto em funções[4].
Respondem civilmente pelos atos ou omissões dos seus representantes, agentes ou
mandatários (art. 9º, Lei nº 32/2007, de 13/08, em remissão para o art. 500º do
Código Civil, que define o regime da responsabilidade do comitente, aplicável
ao Estado e às pessoas coletivas públicas por danos causados no exercício de
atividade de gestão privada).
Subsidiariamente, é aplicável às
associações humanitárias de bombeiros o regime geral das associações. Pelo
contrário, as disposições do Código Administrativo relativas às pessoas
coletivas de utilidade pública administrativa não lhes são aplicáveis (art.
50º, Lei 32/2007).
Posto isto, as associações humanitárias de
bombeiros regem-se, em regra, pelo direito privado, e só estão vinculadas ao
direito administrativo por determinação expressa da lei. Além
disso, respondem pelos prejuízos causados a terceiros no exercício da sua
atividade segundo um regime de direito privado. Só quando o ato danoso é
praticado no exercício de poderes de autoridade ou segundo um regime de direito
administrativo, é que as associações humanitárias de bombeiros respondem
perante os tribunais administrativos.
Neste caso concreto, no qual é pedida uma
indemnização pelo dano sofrido por E, o facto lesivo consistiu na travagem
conjugada com o incumprimento dos deveres de utilização dos dispositivos de
segurança de passageiros.
Considerando o pedido e a causa de pedir,
o Tribunal dos Conflitos concluiu estar em causa a responsabilidade civil
emergente de um acidente de viação. Embora o facto lesivo tenha ocorrido no
âmbito da atividade de transporte de doentes, B, ao conduzir a viatura na via
pública, “fá-lo de forma idêntica aos outros utentes da estrada e com submissão
às mesmas normas de direito privado, não agindo no exercício de poderes
públicos que lhe sejam atribuídos em função da sua condição de condutor da ambulância”,
propriedade da Associação Humanitária de Bombeiros. A “imperícia e a falta de
cuidado que são imputadas ao condutor do veículo não resultou do desrespeito de
vinculações jurídico-públicas impostas à Associação Humanitária, enquanto
titular de funções públicas”. Deste modo, aplicar-se-á o regime privado e os
tribunais competentes são os tribunais comuns, isto é, judiciais (art. 500º,
CC).
Foi esta decisão do Tribunal dos Conflitos
tomada corretamente?
Nos conflitos de jurisdição o que está em
causa são conflitos que envolvem tribunais de espécies diferentes. Os tribunais
administrativos e fiscais têm competência para julgar as ações e recursos
contenciosos que tenham “por objeto dirimir os litígios emergentes das relações
jurídicas administrativas e fiscais” (art. 212º/3, CRP). Atendendo às atuais
disposições do ETAF, mais concretamente ao art. 4º/1, h), a apreciação de
litígios que tenham por objeto questões relativas à “responsabilidade civil
extracontratual dos demais sujeitos aos quais seja aplicável o regime
específico da responsabilidade do Estado e demais pessoas coletivas de direito
público” compete aos tribunais administrativos e fiscais.
As associações humanitárias de bombeiros
voluntários são entidades privadas que prosseguem fins de interesse público (proteção
de pessoas e bens e a extinção de incêndios). Deste modo, será ponto assente
que os tribunais administrativos podem ser competentes quando a litígios que
surjam em relação a estas entidades.
Segundo o próprio regime jurídico das associações
humanitárias de bombeiros (Lei nº 32/2007), estas adquirem personalidade
jurídica e são reconhecidas como pessoas coletivas de utilidade pública
administrativa com a sua constituição (art. 3º). Posto isto, e sendo que, como
foi referido anteriormente, o Código Administrativo, nas disposições relativas
às pessoas coletivas de utilidade pública, não é aplicável a estas associações
(art. 50º/2, Lei 32/2007).
Nestes termos, o Professor Vasco Pereira
da Silva[5]
considera que o ex-artigo 4º/1, i) do ETAF deve ser interpretado tendo em conta
que “a análise de cada uma das situações identificadas como pertencentes ao
Contencioso Administrativo não é taxativa, mas apenas indicativa dos elementos
a ponderar para a determinação do âmbito da jurisdição administrativa” e que da
análise conjugada das alíneas deste mesmo artigo referentes à responsabilidade
civil pública irá resultar uma «inequívoca consagração de um regime de unidade
jurisdicional, tanto no que respeita ao contencioso da responsabilidade civil extracontratual
da Administração Pública, em virtude do abandono da “falsa distinção” entre
gestão pública e gestão privada como critério da determinação da competência do
tribunal (como antes ocorria), como também, mais amplamente, no que se refere
ao contencioso de toda a responsabilidade civil pública, que agora passa a ser
da competência dos tribunais administrativos». Assim sendo, o Professor defende
a unificação deste regime jurídico, sendo idênticas as opiniões de Mário Aroso de
Almeida e de Diogo Freitas do Amaral[6]. Estes
últimos autores consideram que «”na ausência de disposições de direito
substantivo que prevejam a aplicação do regime específico da responsabilidade
do Estado e demais pessoas coletivas de direito público a entidades privadas,
parece que a previsão do artigo 4º, n.º 1, do ETAF, permanecerá sem alcance
prático”», sendo que o Professor Vasco Pereira da Silva não os acompanha neste
entendimento, tendo em conta o critério geral do art. 1º/1 do ETAF e as normas
que o concretizam, nomeadamente o art. 4º/1, i) (na antiga redação).
O escopo principal das associações
humanitárias de bombeiros é claramente de interesse público, consistindo
sobretudo na proteção dos cidadãos, nomeadamente no acesso à saúde através do
transporte adequado dos doentes a consultas. Estas associações respondem pelos
prejuízos causados a terceiros no exercício da sua atividade segundo um regime
de direito privado. Porém, quando o ato danoso é praticado no exercício de
poderes de autoridade ou segundo um regime de direito administrativo, as
associações humanitárias de bombeiros respondem perante os tribunais
administrativos.
O condutor da ambulância (B) atuava sob o
poder de autoridade da Associação Humanitária de Bombeiros Voluntários, no
exercício das suas funções, no momento em que foi provocado o ato lesivo para
E, logo são aqui chamados os tribunais administrativos.
Este caso pode, como aconteceu, causar um
conflito de jurisdições que se pode tornar difícil de ultrapassar. Ainda assim,
dada a argumentação necessária à apreciação deste caso, concluo pela não
adequação da decisão tomada pelo Tribunal dos Conflitos, sendo que, nos termos
do art. 4º/1, h) e do art. 1º/5 do RRCEE[7],
os tribunais competentes para decidir este litígio são os tribunais
administrativos (TAF de Braga, mais concretamente) e não os judiciais.
Bibliografia:
PEREIRA DA SILVA, Vasco, O Contencioso Administrativo no Divã da Psicanálise – Ensaio sobre as
ações no novo processo administrativo, 2ª edição, Almedina, 2009
AROSO DE ALMEIDA, Mário/ FREITAS DO AMARAL, Diogo, Grandes Linhas da Reforma Do Contencioso
Administrativo, 3ª Edição, Almedina, Coimbra
Madalena Silva, nº 26272
[1] Tribunal inominado, de tipo
arbitral, que se destina ao julgamento dos conflitos de jurisdição e
competência entre autoridades administrativas e judiciais. É composto pelos
juízes da Secção do Contencioso Administrativo do STA e por três juízes do STJ,
sorteados para cada processo.
[2] Ac. do Tribunal dos Conflitos de
27/10/2004 – Conflito nº 02/04.
[3] Redação do ETAF antes da
atualização de 2015.
[4] Art. 2º/1 e 3 da Lei nº 32/2007,
de 13/08.
[5] V.
Pereira da Silva, “O Contencioso Administrativo no Divã da Psicanálise”, p. 524
e 525, 536-538.
[6] M. Aroso de Almeida e D. Freitas
do Amaral, “Grandes Linhas da R. do C. A”, p. 36.
[7] “As disposições que, na presente
lei, regulam a responsabilidade das pessoas coletivas de direito público, bem
como dos titulares dos seus órgãos, funcionários e agentes, por danos
decorrentes do exercício da função administrativa, são também aplicáveis à
responsabilidade civil de pessoas coletivas de direito privado e respetivos
trabalhadores, titulares de órgãos sociais, representantes legais ou
auxiliares, por ações ou omissões que adotem no exercício de prerrogativas de
poder público ou que sejam reguladas por disposições ou princípios de direito
administrativo.”
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