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A Conquista da Arbitragem Administrativa: Primórdios, Alterações à Arbitragem no Novo CPTA e Litígios Arbitráveis

A Conquista da Arbitragem Administrativa
Primórdios, Alterações à Arbitragem no Novo CPTA e Litígios Arbitráveis


Introdução

Apesar da natural e compreensível centralização do processo nos tribunais administrativos, é erróneo retirar mérito à tradição portuguesa que nos conduz à resolução de litígios por intermédio de tribunais arbitrais, muitíssimo distinta da realidade vivida noutros países.
Actualmente pacífica, a constituição de tribunais arbitrais para resolução de conflitos é indiscutivelmente revolucionária nos seus primórdios, em particular tendo em consideração a matriz francesa, pedra basilar do Direito Administrativo Português, cuja jurisprudência acolhia (entre uma série de outros princípios limitativos em jeito absolutista) um princípio geral de proibição de recurso pelas pessoas colectivas à arbitragem para resolução dos conflitos nos quais tomassem parte.
Todavia, o “curso das águas” foi contrariado pelas sucessivas intervenções decisivas do Supremo Tribunal Administrativo, que conseguiu levar “o barco a bom porto”, atribuindo um papel de destaque à arbitragem a nível nacional, cada vez mais consolidado no Código de Processo dos Tribunais Administrativos (doravante, CPTA), proporcionando ao regime português uma grandiosa conquista
 Pode assim dizer-se, nas palavras do Prof. Mário Aroso de Almeida, que não vigora em Portugal uma reserva da jurisdição estadual no que concerne aos litígios que envolvam a Administração Pública e que neste âmbito dever-se-á interpretar o nº 3 do Artigo 212 da Constituição da República Portuguesa (futuramente, CRP) tendo em conta este factor essencial (conjugado com os Artigos 209º e 211º, também da CRP).
As alterações e evolução da arbitragem administrativa não conhecem o seu estancamento nos presentes dias. Na verdade, esta é uma área que se encontra em constante crescimento no ordenamento jurídico português, representando cada vez mais uma opção viável para as partes, que ultrapassam o status quo de recurso ao outrora monopólio dos tribunais administrativos.
Ainda quanto à arbitragem administrativa em concreto, o Professor Paulo Otero defende que na última década, mais particularmente nos últimos cinco anos, podemos falar de uma verdadeira revolução arbitral.
Nesta sequência, a Lei da Arbitragem Voluntária vem consagrar esta evolução da arbitragem administrativa, segundo a qual “ O Estado e outras pessoas colectivas de direito público podem celebrar convenções de arbitragem, na medida em que para tanto estejam autorizadas por lei ou se tais convenções tiverem por objecto litígios de direito privado”.
As recentes alterações da arbitragem administrativa conduziram inevitavelmente a um alargamento do âmbito dos litígios arbitráveis. Todavia, estas alterações não são representativas de um total desrespeito pelas traves mestras da arbitragem administrativa, sendo que existem preceitos que se mantém presentes como, a título de exemplo, a possibilidade de constituição de um tribunal arbitral para questões relativas a contratos e à responsabilidade civil extracontratual.
Assim sendo, vejamos o que as alterações inseridas pelo DecretoLei 2014-G/2015 de 2 de Outubro fizeram por influenciar o actual CPTA relativamente aos litígios susceptíveis de serem arbitrados.


Alterações à Arbitragem Administrativa no novo CPTA


1)    Arbitragem Administrativa em matéria contratual e de responsabilidade


O regime de arbitralidade vigente é hoje o do Art. 180º CPTA, que contou com uma alteração ao enunciado da alínea a) do nº1 deste mesmo Artigo, sendo que agora no mesmo pode ler-se que são passíveis de ser julgados “questões respeitantes a contratos, incluindo a anulação ou declaração de nulidade de actos administrativos relativos à respectiva execução.”
Esta alteração visou densificar a norma, enunciando um conjunto claro de situações previstas para aplicação da mesma. Na opinião do Professor Mário Aroso de Almeida, é elucidativa dos poderes legalmente conferidos aos tribunais arbitrais administrativos, sempre que estes tenham que julgar questões respeitantes a actos administrativos de execução de contratos.
Todavia, esta tentativa de clarificar o âmbito de aplicação da norma suscita algumas dúvidas precisamente por aquilo que deixa de fora: a alínea não elenca a questão da declaração de inexistência de actos administrativos de execução de contratos, como seria expectável de singrar numa norma que procura ser explanatória.
Uma possível justificação para esta imperfeita redação é a ideia de que o legislador terá tentado harmonizar a norma com o regime da nulidade-anulabilidade existente no CPA e não excluir esta questão, sendo mesmo que o entendimento tem sido recorrer à arbitragem para actos anulados, nulos ou inexistentes.
Quanto à alteração da alínea b) do nº1 do Art. 180º CPTA, “as indemnizações devidas nos termos da lei, no âmbito das relações jurídicas administrativas” representam um alargamento do âmbito relativamente à disposição anterior. Esta necessidade de referência a compensações surge por ser de conhecimento generalizado que existem mais indemnizações originárias em relações jurídico-administrativas do que as já previamente consideradas e que seriam necessárias englobar.


2)    Arbitragem Administrativa em matéria de actos pré-contratuais


A redação originária do Art. 180º do CPTA revelava-se particularmente infeliz relativamente à impugnação dos actos relativos à formação dos contratos, deixando de fora os domínios em que a arbitragem era permitida nessas situações e causando alguns constrangimentos . Com a reforma do CPTA, o nº3 do Art.180º, conjugado com a alínea c) do nº1 do mesmo Artigo vem fornecer a resposta há muito procurada no âmbito do contencioso pré-contratual, visando simplificar a formação de contratos públicos.
No entanto, este regime tem algumas particularidades que não deverão ser ignoradas:
- O mecanismo arbitral é voluntário, sendo que o recurso à arbitragem administrativa poderá ser aceite ou recusado, nunca podendo ser imposto; (Professor Marco Caldeira)
- A escolha dos árbitros é também complexa, de forma a assegurar a isenção dos mesmos. Neste âmbito, a constituição de um tribunal colectivo releva-se essencial. Também a nomeação de um “árbitro de parte” deve ser ponderada e feita com todos os elementos e dados relevantes para o litígio disponíveis, para que a escolha da pessoa assente em critérios de qualidade transparentes;
- A cooptação de um terceiro árbitro, que irá assumir funções de Presidente do tribunal em questão, para garantir maior imparcialidade face aos dois “árbitros de parte”;
Importa ainda referir que no contencioso pré-contratual, quando as partes decidirem recorrer a um tribunal arbitral administrativo no âmbito de um regime de urgência, as garantias asseguradas ao interessado junto dos tribunais estaduais continuam a ser consideradas e respeitadas no seio da arbitragem administrativa.


3)      Arbitragem administrativa quanto a actos administrativos


Relativamente a este ponto, a revisão do CPTA de 2015 vem permitir que a arbitragem administrativa quanto a actos administrativos abranja também a validade desses mesmos actos, salvo determinação legal em contrário. Esta disposição encontra-se actualmente disposta na alínea c) do nº1 do Art. 180º CPTA.
A verdade relativamente a esta alteração, de acordo com o Professor Mário Aroso de Almeida, é que um rumo semelhante já se avizinhava visto que as sucessivas alterações que o legislador efectuou no âmbito da inarbitralidade foram deixando espaços por preencher num vazio jurídico que posteriormente se revelaria incoerente quando se comparavam duas normas relacionadas com o assunto e era claro que não existiam argumentos lógicos que suportassem a permanência de determinadas inarbitralidades.
Esta questão foi abordada e bem explicada pelo Doutor Tiago Serrão, que diz que as matérias sujeitas a arbitragem eram matérias nas quais se verificava uma situação de disponibilidade, contrariamente aos actos administrativos, sendo manifestamente “indisponíveis”, o que fazia com que estes facilmente ficassem de fora do âmbito de aplicação.
Esta dificuldade em considerar os actos administrativos como susceptíveis de arbitragem permaneceu durante muito tempo e foi muito discutido pela doutrina, só tendo encontrado algum tipo de resolução com a revisão de 2015.
Durante este período, algumas das indagações dos mais diversos autores ganharam contornos bem vincados: seria esta norma constitucionalmente aceite? Esta norma referia-se apenas a actos discricionários ou também abarcaria actos vinculados?
Estas questões foram sendo respondidas pelas mais diversas vias (como é caso da primeira questão anteriormente colocada, respondida pelo Art. 212/3º CRP) o que permitiram a permanência da alínea c), nº1, Art. 180ª CPTA com cada vez menos dúvidas associadas à mesma.



Conclusões

Tendo em consideração os tópicos anteriormente abordados e a relevância que a arbitragem administrativa assume na actualidade, parece-me notório que o clima de constante transformação e mudança que é vivido pelo Direito Administrativo revela-se ainda mais gritante na Arbitragem Administrativa que, desde os seus primórdios, contra tudo aquilo que historicamente se revelaria natural, surpreendeu ganhando a cada dia, um lugar de destaque no Contencioso Administrativo.
Na perpectiva do Professor Tiago Serrão, esta conquista da arbitragem a nível normativo não poderá surpreender nem os menos atentos, tendo em conta os gritos do Ipiranga entoados pela doutrina portuguesa para a arbitragem ter oportunidade de prosperar e criar ela própria um grande Império.
Todavia, importa ter em conta que apenas as revisões de 2015 (que são muitas mais do que as escolhidas para esta reflexão) trouxeram uma evolução significativa a nível normativo o que poderá querer indicar que muito trabalho ainda existirá a fazer para que a Arbitragem Administrativa se funda no Contencioso Administrativo e tomando parte inegável do ordenamento jurídico português.






Bibliografia

- ALMEIDA, Mário Aroso de, Manual de Processo Administrativo, 3ª Edição, Almedina, 2017,
-CALDEIRA, Marco e SERRÃO, Tiago, As arbitragens pré-contratuais no Direito Administrativo português: entre a novidade e o risco de inefectividade, in AA. VV., Arbitragem e Direito Público, coord. Carla Amado Gomes, Domingos Soares Farinho e Ricardo Pedro, Associação Académica da Faculdade de Direito de Lisboa, 2015

- SERRÃO, Tiago, A arbitragem no CPTA: primeiras impressões, in Comentários à Revisão do ETAF e do CPTA, Associação Académica da Faculdade de Direito de Lisboa, 2ª Edição, 2016.


Raquel Toscano Costa
Nº 24 900

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