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Objecto do processo de acção impugnatória: Concepção objectivista vs Concepção subjectivista

Segundo a teoria geral do processo civil o objecto do processo é o pedido do autor e a causa de pedir. Sendo o primeiro o que o autor pretende que o tribunal faça dependendo da natureza do pedido (declarativo, condenatório ou constitutivo), e o segundo são os factos subjacentes ao pedido ou os factos que fundamentam o pedido.
            Para Mário Aroso de Almeida, o objecto do processo de acção impugnatória assume uma forma compósita ou complexa. Para o autor o objecto da acção impugnatória é a pretensão do autor tendo esta dois objectivos, o primeiro é obter a declaração de nulidade ou anulação do acto, o segundo é o que o autor chama de acertamento negativo do poder manifestado através do acto impugnado que, basicamente, é a declaração por parte do tribunal que a Administração produziu um acto inválido. Por isto, Aroso de Almeida nega expressamente que o objecto do processo seja o acto impugnado. O autor diz que o acto é objecto da declaração de nulidade ou da anulação que eventualmente o tribunal emita, mas não do processo de impugnação. Esta é a concepção objectivista do objecto do processo de acção impugnatória.
            Portanto, nesta perspectiva, o art. 95/3 CPTA assume um papel importante para o autor e não só para o tribunal. O autor terá que invocar todos os vícios de que o acto padeça para que veja a sua pretensão satisfeita, e consequentemente fazer prova. Sob pena de ao não invocar algum vício, a Administração renove o acto sem que o autor se possa manifestar novamente, já que a decisão assume a forma de caso julgado material. Tal como o tribunal se pode pronunciar sobre causas de invalidade diversas das que tenham sido alegadas. Aroso de Almeida diz que esta capacidade não é uma manifestação do princípio iura novit curia mas uma garantia de que o acto será declarado inválido por todos os vícios de que padeça para uma menor chance de renovação do acto. No fundo, é uma forma de reforçar a segurança jurídica dos direitos que o autor quer defender com a impugnação do acto. Porque o mesmo autor reconhece que a acção tem como finalidade declarar o acto como totalmente inválido e, assim, fazer cessar quaisquer efeitos que o acto tenha produzido, efeitos esses que podem ter tido consequências nefastas para os direitos do interessado (aliás é esse o fundamento da legitimidade do interessado, segundo o autor). Para concluir, a consequência do art. 95/3 CPTA será um alargamento dos poderes inquisitórios conferidos ao juiz pelo art. 90/3 CPTA mas sempre dentro dos limites do processo, que serão sempre as partes a definir, como postula o art. 95/1 CPTA.
            Já Vasco Pereira da Silva tem uma concepção diferente sobre o objecto da acção impugnatória. Para este autor o objecto da acção impugnatória é o acto administrativo inválido e os seus efeitos lesivos de direitos dos particulares. Portanto, assume uma concepção subjectivista do objecto da acção impugnatória baseando-se legalmente no art. 268/4 CRP (“protecção plena e efectiva dos direitos dos particulares”). Assim, a determinação do objecto da acção impugnatória fazer-se-ia determinando a conexão entre a ilegalidade do acto e o direito subjectivo violado (o autor chama de ilegalidade relativa).
            De seguida, Vasco Pereira da Silva analisa o art. 95/3 CPTA e chega às mesmas conclusões que Mário Aroso de Almeida: de que não se trata do princípio iura novit curia e que este artigo existe para garantir uma maior protecção dos direitos do interessado ao reduzir as chances de o acto ser reaproveitado pela Administração.
            A divergência entre estes autores surge precisamente em relação à concepção de objecto da acção impugnatória que cada um tem. Vasco Pereira da Silva considera a concepção objectivista enviesada e limitadora porque desconsidera os direitos do particular e porque limita a função do juiz que não pode basear a sua decisão nos direitos do lesado, mas apenas nos vícios de que padeça o acto administrativo, e tais consequências levariam a uma menor protecção dos direitos do interessado. Por isso, o mesmo autor defende que o objecto da acção impugnatória é a actuação administrativa na medida da lesão de direitos do particular alegada pelo mesmo em processo, basicamente, o objecto da acção seriam os direitos subjectivos alegados pelo particular.
            Tirando esta conclusão, Vasco Pereira da Silva critica Mário Aroso de Almeida quando este considera que o direito do particular em accionar o processo de impugnação do acto está ligado às consequências ou lesões que esse acto da Administração tenha provocado na sua esfera. Porque o primeiro autor considera que há uma confusão entre relação jurídica substantiva e processual, entre o direito à acção e o direito subjectivo que o particular pretende defender com a acção, dizendo que o segundo autor criou um direito subjectivo/objectivo. O que resultaria num contrasenso já que se todos os direitos subjectivos se fundassem numa actuação da Administração, o conteúdo do direito seria o acto administrativo e, portanto, num processo de impugnação o que o particular pretenderia impugnar seria o seu direito subjectivo. Além do mais, Vasco Pereira da Silva argumenta que uma tal concepção objectivista, intimamente ligada aos vícios do acto, levaria a que o juiz tivesse um papel fundamental no processo (o juiz seria parte no processo) devido ao art. 95/3 CPTA que permite ao juiz identificar vícios que as partes não tenham alegado sem qualquer limite. Solução que seria inconstitucional por violação dos princípios da imparcialidade e independência dos tribunais e que violaria o CPTA nas regras relativas às partes e ao princípio do contraditório.
            Comecei o post por referir o conceito de objecto do processo segundo a teoria geral do processo. O objecto do processo são o pedido e a causa de pedir. No caso concreto da acção impugnatória o que o autor pretende (o pedido do autor) será ou a declaração de nulidade do acto (acção declarativa) ou a anulação do acto (acção constitutiva). Até aqui não há divergência. A divergência está na causa de pedir, nos factos subjacentes ao pedido, no fundo, os factos que fundamentam o pedido. Estando em jogo duas concepções: a objectivista que considera que a causa de pedir são os vícios do acto administrativo, e a subjectivista que considera que a causa de pedir são as lesões aos direitos subjectivos do interessado provocadas pelo acto administrativo.
            Ora, dando um exemplo prático, A que é titular de um direito subjectivo que pretende impugnar um acto da Administração, concretamente na sua petição inicial, terá que invocar as lesões que o seu direito subjectivo sofreu, mas também terá que invocar os vícios do acto. Não basta que haja lesões ao direito subjectivo para que um acto seja impugnado. Porque, por exemplo, se a Administração atribuir uma licença para que se abra um restaurante no rés do chão dum prédio, e os moradores desse prédio pretenderem impugnar o acto de atribuição dessa licença com base na lesão do seu direito à saúde porque estão sujeitos aos vapores que saem constantemente das cozinhas do restaurante, os interessados não podem só invocar a lesão ao direito subjectivo, terão também de invocar algum vício na atribuição da licença, caso contrário o acto de atribuição da licença será considerado válido e o restaurante permanecerá onde está.
            Portanto, na minha perspectiva, a causa de pedir são conjuntamente as lesões que o direito subjectivo do interessado sofreu e os vícios de que o acto padece. Os vícios do acto administrativo podem ter várias origens ou porque não se encontravam reunidos os elementos constitutivos do poder exercido (vícios quanto aos pressupostos e quanto ao conteúdo do ato), ou por se terem verificado factos impediditivos ou extintivos que obstavam ao exercício desse poder (vícios de procedimento, de forma ou no exercício de poderes discricionários). A causa de pedir, sendo esta o que fundamenta o pedido, a argumentação que o autor apresenta ao juiz para fazer valer a sua pretensão, tem que ser constituída pelos dois elementos, sob pena de o pedido ser mal fundamentado e o interessado não ganhar a acção. E Mário Aroso de Almeida é o autor que se aproxima mais desta perspetiva porque este considera que a lesão do direito subjetivo é o que fundamenta a legitimidade do interessado e os vícios do acto fundamentam o pedido.

Bibliografia:
AROSO DE ALMEIDA; Mário, Manual de Processo Administrativo, 3ª edição, Almedina, 2017 (páginas 81 a 86)
PEREIRA DA SILVA, Vasco, O Contencioso Administrativo no Divã da Psicanálise- ensaio sobre as acções no novo processo administrativo, 2ª edição, Almedina, 2009 (páginas 292 a 313)

Joana Corado
Nº 26201


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