O Direito Administrativo português, desde
que Portugal entrou na União Europeia em 1986, absorveu inúmeras normas
europeias com vista à harmonização destas matérias entre os Estados-Membros[1].
Deste modo, é possível defender que estamos perante um verdadeiro “Direito
Administrativo Europeu”[2],
e, a par deste, um “Processo Administrativo Europeu” (o prof. Vasco Pereira da
Silva utiliza, no entanto, este conceito num sentido amplo, abrangendo não só
Direito da União Europeia, mas também outras normas europeias que não emanem
dessa organização internacional, nomeadamente as que resultam da adesão de
Portugal à Convenção Europeia dos Direitos do Homem[3]).
Colocando o foco no Direito da União
Europeia, há que ter em conta que, não obstante a quantidade de regulamentos e
directivas a que os Estados-Membros da UE se encontram sujeitos, muito do
desenvolvimento deste ramo Direito, e do Contencioso Administrativo em
particular, se deveu à actuação constante do Tribunal de Justiça da União
Europeia (doravante, TJUE), através da sua jurisprudência.
Deste modo, é possível verificar a progressiva
imposição deste tribunal aos Estados-membros no cumprimento do Direito da UE,
quanto a estas matérias, acabando não só por harmonizar o comportamento destes
na sua relação com a UE, mas também por influenciar a mudança de paradigma do
Contencioso Administrativo nacional que, mais concretamente em Portugal, mas
também por toda a Europa, ocorreu na viragem do milénio.
O TJUE, quanto ao Direito Administrativo
em geral e Direito Processual Administrativo em particular, começou por não se
imiscuir em demasia com os vários direitos nacionais. Isto devia-se ao facto de
se associar esta área à esfera de actuação exclusiva dos Estados, em que
Governo e Administração eram um só[4],
havendo uma espécie de “princípio de autonomia processual”, sendo o Direito
Processual Administrativo Europeu um mero “mínimo denominador comum” entre
Estados-Membros[5].
A esta aplicação mais limitada do Direito
da UE, alia-se a uma noção tendencialmente objectiva (influenciada pela matriz
francesa) do Direito Processual Administrativo Europeu, na medida em que este
promovia a mera legalidade dos processos na defesa do interesse comunitário.
No entanto, o TJUE começou a impôr um
mínimo de garantia, pelos tribunais nacionais, dos direitos dos particulares
nos processos de Direito Administrativo em sede da UE. Apesar de apenas definir
um “princípio de tutela jurisdicional efectiva” dos direitos dos particulares a
partir dos anos 80[6], o TJUE já definia algumas
medidas de tutela em acórdãos anteriores:
No Acórdão “Van Gend en
Loos”[7],
de 1963, em que é conferido aos particulares o poder de demandar directamente os
Estados pela não transposição de directivas da UE que confiram direitos de
forma expressa e inequívoca aos cidadãos – o chamado efeito directo.
No Acórdão “Saarland”[8],
de 1976, segundo o qual os Estados cumprem um papel de integração de lacunas. A
tutela dos direitos dos particulares decorrentes de Direito da UE e o seu
acesso aos tribunais devem ser assegurados pelo direito nacional quando não
haja uma norma europeia aplicável, segundo o princípio da cooperação. Acresce
ainda o dever de os Estados assegurarem que essa tutela seja eficiente na
prática, não podendo, nomeadamente, ser menos favorável em comparação a
situações similares de direito interno.
O TJUE procurou, deste modo, garantir que
os particulares, enquanto cidadãos europeus, tivessem uma tutela homogeneizada
dos seus direitos e um acesso igual aos tribunais, qualquer que fosse o seu
Estado-Membro. Além do mais, de modo a facilitar essa mesma tutela, os tribunais
nacionais passam a agir também como tribunais do contencioso da união europeia,
permitindo a agilização de todo o processo[9].
Por exemplo, no acórdão “Borelli”,
analisado pelo prof. Eduardo García de Enterría[10], o TJUE retirou do antigo
artigo 5º do TCE (correspondente ao actual artigo 4º, nº3, parágrafos 2 e 3, do
Tratado da União Europeia) que os tribunais nacionais, caso o direito português
não previsse um meio de acesso processual ou o mesmo se revelasse insuficiente,
deveriam assegurar a existência desses meios de acesso.
O autor aqui contesta a
aproximação desta decisão pelo TJUE ao princípio de cooperação leal, dado que,
regra geral, os tribunais nacionais estão constitucionalmente vedados de criar
lei; este princípio visaria em concreto os legisladores nacionais, na produção
de normas conformes/não conflituantes com o direito da UE. Aqui estaria em
causa um princípio de efeito directo (caso fosse considerado num sentido mais
amplo), e não o princípio de cooperação leal vertido nesse artigo.
É possível aferir a partir deste princípio
de tutela jurisdicional efectiva que se dá alguma subjectivização do modelo
europeu do seu Processo Administrativo, dada a relevância que passam a ter os
direitos dos particulares. Assim, vários autores consideram haver um modelo
misto, no qual se junta a defesa da legalidade e do interesse comunitário à
tutela dos direitos subjectivos dos particulares[11].
No entanto, há que ter em conta o facto de
que o interesse da União Europeia tende a prevalecer quando se oponha aos
interesses dos particulares. Com efeito, o TJUE, no confronto entre direitos
subjectivos dos particulares e as administrações nacionais dos Estados-Membros,
dá relevância ao princípio da tutela jurisdicional efectiva; no entanto, no
confronto dos direitos dos particulares com a Administração da União Europeia,
acaba por dar maior relevância ao interesse comunitário[12].
Podemos ainda considerar uma perspectiva segundo a qual o TJUE acabou por
adoptar este princípio da tutela jurisdicional efectiva apenas enquanto meio de
assegurar que o direito nacional dos Estados aja em conformidade com o direito
e o interesse da União, tendo então como verdadeiras finalidades o respeito
pelo princípio do primado do direito da União Europeia, assim como a
harmonização do direito interno dos Estados-Membros.
Deste modo, e tendo em conta que a tutela
dos direitos dos particulares depende da sua concordância com o próprio
interesse comunitário, parece prevalecer a objectividade no seio do Contencioso
Administrativo Europeu.
Não obstante, na relação da UE com os
Estados-Membros nesta matéria (através da actuação do TJUE), o elemento
subjectivo, que se consolidou a partir dos anos 80, é preponderante, tendo
acabado por ser relevante na alteração do paradigma do contencioso português
aquando da adesão de Portugal à CEE em 1986, ao ser percursor da revisão
constitucional de 1997 e da reforma do processo administrativo português em
2002-2004.
Com efeito, não só em Portugal se verificou
uma alteração do modelo de contencioso administrativo. Tendo as suas bases,
como já foi referido supra, a partir
dos anos 80, o Direito da União Europeia (assim como a Convenção Europeia dos
Direitos do Homem) influenciou várias reformas que se realizaram por toda a
Europa, a partir da década de 90. França, que era o caso paradigmático do
modelo objectivista do contencioso administrativo, levou a cabo uma reforma no
ano de 2000 de modo a garantir uma tutela dos direitos dos particulares, a par
de alterações dos órgãos jurisdicionais administrativos, de modo a torná-los
independentes e imparciais face à Administração[13].
Em Itália e em Espanha também se operaram
reformas do contencioso administrativo no mesmo sentido, apesar de não tão
vincadas como as alterações levadas a cabo em França, garantindo a tutela
jurisdicional efectiva a nível do processo e das providências cautelares[14].
Já a Alemanha, apesar de se encontrar mais próxima desta vertente do direito
europeu (em oposição à matriz francesa), viu o seu modelo subjectivista
atenuado, de modo a ficar a par com o direito europeu e com os restantes
Estados-Membros. Como consequência, os direitos dos particulares no direito
alemão foram atenuados, e a tutela cautelar foi restringida[15].
Em Portugal, a Revisão Constitucional de
1982 (ainda anterior à adesão à CEE) alterou o artigo 268º da Constituição,
passando o mesmo a reconhecer o acesso dos particulares no reconhecimento de
direitos e interesses legalmente protegidos[16].
No entanto, não estava ainda definida uma tutela jurisdicional efectiva, pelo
que tanto a jurisprudência como doutrina objectivista acabavam por
desconsiderar a vertente subjectiva (nomeadamente através da não inclusão da
tutela cautelar no preceito)[17].
A Revisão Constitucional de 1997, veio, no
entanto, colocar o foco no particular, atribuindo-lhe expressamente uma tutela
jurisdicional efectiva, na defesa dos seus direitos face à Administração. São,
nomeadamente, incluídas nesta alteração, a tutela cautelar e a determinação da
prática de actos administrativos legalmente devidos pela Administração, de modo
a evitar omissões que prejudiquem esta tutela dos particulares.
É neste contexto que a Reforma do Contencioso
Administrativo em Portugal arranca, tendo, portanto, resultado de uma
necessidade de ajustar a legislação face à Revisão Constitucional de 1997 e da
sua harmonização com o modelo europeu[18].
Podemos ainda concluir que as alterações levadas a cabo na Constituição em 1997
foram uma consequência, não só do que tinha sido deixado incompleto pela revisão
de 1982, mas também de uma tendência geral, a nível europeu, de subjectivização
do contencioso administrativo, através do
foco nos direitos dos particulares e da igualdade no processo entre
particulares e Administração.
[1] Fausto Quadros, “Direito da União Europeia”, Almedina, 3ª edição, 2013 p. 500
[2] Miguel Prata Roque, “Direito Processual Administrativo Europeu”, Coimbra Editora, 1ª Edição, 2011, pp. 52 ss
[3] Vasco Pereira da Silva, “O Contencioso Administrativo no Divã da Psicanálise”, Almedina, 2ª edição, 2009, pp. 106-107
[4] Ibidem
[5] Prata Roque, op. cit., p. 324
[6] Idem, p. 330; Sérvulo Correia, Direito do Contencioso Administrativo, Lex, 2005, pp. 358-360
[9] Fausto de Quadros, “A Nova Dimensão do Direito Administrativo (O Direito Administrativo Português na Perspectiva Comunitária)”, Almedina, 1999, pp. 43-45; Vasco Pereira da Silva, op. cit., pp. 118-119
[10] Eduardo García de Enterría, “The Extension of the Jurisdiction of National Administrative Courts by Community Law: the Judgment of the Court of Justice in Borelli and Article 5 of the EC Treaty”
[11] Prata Roque, op. cit., pp. 407ss
[12] Idem, pp. 412-413
[13] Vasco Pereira da Silva, op. cit. pp. 125ss
[14] Idem, pp. 140-143 e 143-145, respectivamente
[15] Idem, pp. 137ss
[16] Jorge Miranda e Rui Medeiros, “Constituição Anotada”, Tomo III, Coimbra, 2005, pp. 608ss
Bibliografia e Jurisprudência
Fausto de Quadros, “A Nova
Dimensão do Direito Administrativo (O Direito Administrativo Português na
Perspectiva Comunitária)”, Almedina, 1999
Fausto Quadros, “Direito da União Europeia”, Almedina,
3ª edição, 2013
Vasco Pereira da Silva, O Contencioso Administrativo
no Divã da Psicanálise, Almedina, 2ª edição, 2009
Miguel Prata Roque, Direito Processual Administrativo
Europeu, Coimbra Editora, 1ª Edição, 2011 – pp. 52ss, 324ss, 407ss
Sérvulo Correia, Direito do
Contencioso Administrativo, Lex, 2005
Eduardo García de
Enterría, The Extension of the Jurisdiction of National Administrative Courts
by Community Law: the Judgment of the Court of Justice in Borelli and Article 5
of the EC Treaty
Acórdão TJUE 33-76
(“Rewe-Zentralfinanz eG and Rewe-Zentral AG v Landwirtschaftskammer für das Saarland”)
- http://eur-lex.europa.eu/legal-content/EN/TXT/?uri=CELEX%3A61976CJ0033
Acórdão TJUE 26-62
(“NV Algemene Transport- en Expeditie Onderneming van Gend & Loos v
Netherlands Inland Revenue Administration”) - http://eur-lex.europa.eu/legal-content/EN/TXT/?uri=CELEX%3A61962CJ0026
Miguel Simões, nº 26678
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