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O Âmbito de Jurisdição dos Tribunais Administrativos - art. 4.º, n.º 1, al. o) do ETAF

Após uma enumeração em catorze alíneas que definem questões sobre as quais incide a competência dos tribunais da jurisdição administrativa e fiscal, o seu âmbito, deparamo-nos com a alínea o) do mesmo número e artigo. A al. o), do n.º 1, do art. 4, do ETAF remete-nos para uma norma geral e que estende em grande medida o âmbito de jurisdição dos tribunais administrativos e fiscais portugueses. A norma em questão tem a seguinte redação: “Compete aos tribunais da jurisdição administrativa e fiscal a apreciação de litígios que tenham por objeto questões relativas a: (…) Relações jurídicas administrativas e fiscais que não digam respeito às matérias previstas nas alíneas anteriores.
Esta alínea estabelece um critério para situações que não estão expressamente previstas nas alíneas que a precedem.
Convém antes da análise desta norma, observarmos a norma constitucional na qual se acha a sua fundamentação, isto, é, o art. 212, n.º 3, da Constituição da República Portuguesa, que diz o seguinte: “Compete aos tribunais administrativos e fiscais o julgamento das ações e recursos contenciosos que tenham por objeto dirimir os litígios emergentes da relações administrativas e fiscais.
Apesar da referência das normas a “tribunais (…) fiscais” e “relações jurídicas (…) fiscais,” iremos abordar simplesmente a vertente administrativa, tanto dos tribunais como das relações.
J. J. GOMES CANOTILHO e VITAL MOREIRA escrevem que a qualificação transporta duas dimensões caracterizadoras: primeiro, “as ações e recursos incidem sobre relações jurídicas em que, pelo menos, um dos sujeitos é titular, funcionário ou agente de um órgão de poder público (especialmente da administração)”; segundo, “as relações jurídicas controvertidas são reguladas, sob o ponto de vista material, pelo direito administrativo ou fiscal.” Afirmam também que o pretendido com o recurso a este conceito genérico “viabilizar a inclusão na jurisdição administrativa do amplo leque de relações bilaterais e poligonais, externas e internas, entre a Administração e as pessoas civis e entre entes da Administração, que possam ser reconduzidas à atividade de direito público, cuja característica essencial reside na prossecução de funções de direito administrativo.”  Destacam o conceito como sento “suficientemente dúctil e flexível para enfrentar os desafios do «novo direito administrativo».”
MÁRIO AROSO DE ALMEIDA deparado com o critério material de relação jurídica administrativa relembra que “uma relação é jurídica quando o Direito lhe atribui relevância, estabelecendo o respetivo regime regulador” e como consequência será “jurídico-administrativa quando essa relevância lhe seja atribuída pelo Direito Administrativo, sendo, portanto, de normas de Direito Administrativo que decorre o respetivo regime disciplinador”. No mesmo seguimento diz que deve ser qualificada como tal “quando lhe sejam aplicáveis normas que atribuam prerrogativas de autoridade ou imponham deveres, sujeições ou limitações especiais a todos ou a alguns dos intervenientes, por razões de interesse público, que não se colocam no âmbito de relações de natureza jurídico-privada.” Coloca-se ao lado de DIOGO FREITAS DO AMARAL, nesta caracterização.
Subsiste a exploração da questão de quem pode ser parte na relação jurídico-administrativa. Podemos dizer sumariamente que a relação jurídico-administrativa é o vínculo que liga dois ou mais sujeitos, sendo pressuposto que um deles seja uma entidade administrativa. O estabelecido para a relação jurídica procedimental no Código de Procedimento Administrativo parece identificar as possíveis partes. O art. 65.º, do CPA, no n.º1, identifica como sujeitos da relação jurídica procedimental: os órgãos da Administração Pública; os particulares legitimados pelo art. 68.º, n.º 1; as pessoas singulares e coletivas de direito privado, em defesa de interesses difusos, também remetendo para o art. 68.º, mas para os n.ºs 2 e 3; e, os órgãos que exerçam funções administrativas, nas condições do art. 68.º, n.º 4.
Apesar da definição acima apresentada, há que esclarecer quanto à extensão que é dada ao âmbito de apreciação dos tribunais e que tipo de questões estão incluídas na norma em questão.
Dentro das questões que se inserem nesta alínea, MARIO AROSO DE ALMEIDA destaca “aquelas que dizem respeito à atribuição de indemnizações devidas em virtude da imposição de sacrifícios por razões de interesse público,” considera que já não é discutível que se trata de uma matéria que deve ser apreciada pelos tribunais administrativo. A imposição de sacrifícios tem de um lado a Administração Pública, que é quem impõem,  e de outro o particular, a quem é imposto. Existe a criação de uma relação entre o particular e Administração, tendo aquele o direito a ser indemnizado por esta. Cabe então ao tribunal fixar a quantia. Contudo, admitindo como JOÃO CAUPERS no seu comentário ao art. 16.º do RRCEE, sobre indemnização sobre o sacrifício, que estamos perante casos de expropriação por utilidade pública, estamos perante uma lesão da propriedade privada, cuja direito e liberdade a esta está consagrada no art. 62.º, n.º1, na CRP, isto na parte I onde são expostos os direitos e deveres fundamentais. Tendo em conta este raciocínio a aplicação do art. 62.º, n.º 2  e o art. 16.º do RRCEE que estatuem o pagamento de justa indemnização nestes casos não deveria entrar na tutela de direitos fundamentais no âmbito das relações jurídico-administrativas que é colocada a apreciação do tribunal pela alínea a) do n.º 1 do art. 4.º?
Posteriormente refere também o caso das “pretensões dirigidas à condenação à emissão de atos administrativos ilegalmente omitidos ou recusados, nos termos dos artigos 66.º e segs. do CPTA.” Acaba por inserir estes casos também na alínea a) do n.º 1, do art. 4.º - isto, porque é uma norma que prevê ser do âmbito dos tribunais administrativos e fiscais não só a tutela dos direitos fundamentais, mas também os direitos e interesses legalmente protegidos “no âmbito das relações jurídicas administrativas e fiscais.”
Como estes dois casos, muitos mais que seriam reconduzidos à alínea o), n.º 1, do art. 4.º do ETAF acabam por ser reconduzidos a outras alíneas sendo o elenco bastante compreensivo das situações jurídico-administrativas.
Concluindo, esta alínea do ETAF acaba por ser um “aspirador”, isto é, a qualquer resquício de relação jurídico-administrativa o seu sentido é atribuir a competência para apreciação aos tribunais administrativos. O legislador preserva esta previsão ao longo da história para que sejam abarcados os novos desafios do direito administrativo e toda a multiforme relação jurídico-administrativa.





J. J. Gomes Canotilho e Vital Moreira em Constituição da República Portuguesa Anotada, vol. II, Coimbra Editora, 4.ª edição – p. 566-567
Mário Aroso de Almeida em Manual de Processo Administrativo, Almedina, 3.ª edição – p. 176-181

João Caupers em http://www.pgdlisboa.pt/leis/lei_mostra_articulado.php?nid=2073&tabela=leis


Bernardo Cid - n.º 26238

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